por Geo Abreu
“Como é que a gente fazia pra viver antigamente?”
Arquivo é a palavra-chave deste filme. Seja na ideia que permeia a própria produção, pensada como herança às novas gerações do povo Hunikui, seja pelo uso de imagens antigas, revisitadas para ilustrar a narrativa (através da chamada “montagem de atrações) ou para ganhar novos sentidos a partir de uma leitura de dentro, até a busca por documentos vivos, pessoas que não só contam a história de seu povo, como a tem marcada na pele.
O filme começa com dois homens adultos, sentados ao pé de uma árvore de tronco robusto. Um deles pede atenção ao que vai ser dito dali em diante, com postura de autoridade: “Nada de virar os olhos!” Mas, apesar do tom, o que vem a seguir é o relato da existência da etnia Hunikui no tempo, com reflexões sobre tempo histórico, memória, imagem e arquivos. “Como é que a gente fazia pra viver antigamente?”, pergunta um deles.
Os Hunikui dividem a história em cinco períodos: tempo da maloca; tempo da correria; tempo do cativeiro; tempo dos direitos e tempo presente. O diretor-narrador, Zezinho Yube, nos conta que, para falar do tempo da maloca, quando todos os hunikui vivam juntos de seus parentes, é preciso chamar os mais velhos, aqueles que guardam a memória daquela época.
No processo de rememorar esse tempo antigo, examinam-se também as técnicas de pesca, de caça e de fazer fogo. Como podiam os mais antigos pescar e caçar usando apenas flechas, sem os facões e terçados que os brancos trouxeram? Relembram também o episódio que gerou o nome dado a eles pelos nawá (aqueles que não são índios), no desentendimento mútuo: duas crianças matavam morcegos e os nawá perguntaram o que elas estavam fazendo, ao que os meninos responderam “kaxi (matar), nawá”. O resto é história.
Na linha de produção de documentos vivos, a floresta que os Hunikui vem reconstruindo à sua maneira no tempo presente se une aos antigos do tempo do cativeiro, que tiveram a pele marcada pelo dono do seringal em que trabalhavam. Como bois, como propriedade, aquele senhor hunikui que mostra o braço marcado e parece irritado quando conta que todos os nawá pedem que ele mostre aquela marca, é respondido no fora de quadro: “é porque esse é um documento forte”. Quando a canoa no ancião se afasta, vemos a câmera montada num tripé, dentro de outra canoa.
Aliás, os Hunikui estão muito conscientes sobre como e porque é importante produzir imagens, tanto quanto um dia foi importante produzir livros (Zezinho conta que escreveu de seis a sete deles). É desse entendimento que vem a frase que nomeia o filme, quando o pajé diz que já virou imagem e está espalhado e sendo visto pelo mundo, sua consciência sobre a importância do audiovisual e da sua transformação em imagem diz muito sobre o lugar que o cinema ocupa naquelas comunidades.
Quando o filme se ocupa de descrever o tempo presente, o que vemos é uma espécie de making of: o microfone sendo revelado, o set das entrevistas sendo filmado de dentro, uns ensinando aos outros como operar a câmera, a comunidade reunida para assistir videoaulas e, principalmente, esse retorno a imagens antigas nas quais eles podem revisitar costumes, como por exemplo fazer fogo a partir da fricção de duas varetas numa superfície de madeira. “Assim já sabemos o que fazer quando o isqueiro acabar”, foi uma das frases que mais marcou ao assistir esse filme.
Chama atenção o movimento narrativo, que parte do tempo das malocas em que se vivia sem o conhecimento da existência dos nawá, seguido pela vida em fuga do tempo da correria, até a fixação forçada do tempo do cativeiro, que desmobilizou os parentes e foi gradativamente os fazendo esquecer de suas festas e de sua língua; daí então para no tempo dos direitos, lá pela década de 1970, encontrarem na ideia de organização do trabalho dos brancos a força para reivindicarem seu território; e então o tempo presente, que voltou a movimentar e reaproximar os hanikui, visando a recuperação de suas antigas formas de sobrevivência.
Esse movimento de produzir uma linha do tempo, atravessada por imagens produzidas pelos nawá, agora ressignificada pelos hunikui através do manejo das técnicas de produção e montagem com imagens, é o grande prazer deste filme. É o que nos move a acreditar que o audiovisual como assunto da educação popular é algo urgente e necessário. E que pode sim nos ajudar a produzir outras versões de histórias tão (pouco) conhecidas como a dos genocídios dos povos originários e sua luta pela retomada de suas antigas formas de viver no mundo.