O pau duro do Chacal

por João Lucas Pedrosa

Gosto de pensar o cachorro como uma criança que não cresce. Eles aprendem coisas com os anos, a partir da experiência nas ruas ou dos limites que os seus donos estabelecem. Eles compreendem sistemas simples (que se latir perto da cambuca de comida ou de água, os donos vão enchê-la; que se cutucar um humano com a pata, recebe carinho), e geralmente só assim conseguem assimilar o mundo, dialogando com as superfícies táteis (como o cachorro que sofre abuso e estrutura sua defesa generalizando tipos abusadores; White Dog, de Samuel Fuller, nos lembra como isso pode ser instrumentalizado com o cachorro que aprende a odiar negros). Não há diferença entre a tevê, o reflexo do espelho ou o espaço: virtual e concreto são um só. Mas, durante o desbravar espacial, existe sempre algum cheiro de novo escondido em meio ao familiar. O cheiro é o primeiro sentido que se tem dessa nova coisa antes de encostá-la no focinho e metê-la boca adentro ou esfregar-se nela com o corpo. A criança faz a mesma coisa, talvez com a diferença que tende a atrair-se antes pela visão ao invés do olfato. Boa parte das ações não carrega sentido além da possibilidade de sentir, da excitação do próximo sentido primário que o contato direto com coisa ou ser trará. Se é líquido, eu posso beber; se é coisa, deve ter gosto; se cabe na boca, eu posso comer; se a sensação é boa, eu posso continuar. Há uma mistura de ingenuidade com invencibilidade (ou, nesse caso, o desconhecimento de uma vencibilidade) pela ignorância do limite: o pular de uma altura grande demais, ou o morder, mastigar e engolir de algo não-comestível, ou o destroçar de um objeto valioso pelo prazer de senti-lo quebrar. 

Nos créditos iniciais de “O Fantasma” (2000), de João Pedro Rodrigues, um Doberman atravessa um corredor para tentar entrar num quarto fechado. Ele bate com a pata na porta e gane por alguns longos segundos. O plano seguinte é dentro do quarto, um detalhe traseiro do nosso protagonista em roupa de látex comendo um cara pelado. A roupa tem uma abertura em zíper na parte da bunda. Vemos apenas nádegas e coxas, além das mãos algemadas do passivo. O terceiro plano da cena é um close, e o protagonista está mascarado atrás do passivo, segurando com força um pano sobre sua boca. Humanos, enquanto seres deuterostomados, temos no processo de multiplicação celular que formará o feto o ânus como primeiro orifício gerado, para apenas depois ser aberto o que virá a ser uma boca. Pois bem, deste protagonista também é apresentado ao mundo antes o cu, e depois a boca. Em “O Fantasma”, o ato de expelir – para que, a princípio, serve o cu – e o ato de comer – para que, a princípio, serve a boca – são muito próximos e se confundem num ciclo vicioso, cumulativo. Talvez uma imagem explícita da penetração pudesse trazer a inversão gráfico-simbólica de um cu que come (nesse caso, come o pau do ativo), mas perderíamos o protagonista como agente do “comer”. E seu apetite voraz é o que move o filme.     

Esta primeira cena é entre quatro paredes, num ambiente íntimo e fechado onde nem o cachorro entra. Mas o filme é sobre uma criatura da noite, que ronda as ruas. Já vemos, na cena que se segue, o rosto de Sérgio (Ricardo Meneses), o homem antes vestido de látex, num quintal brincando com um cachorro. Duas mãos femininas tapam seus olhos e o fazem adivinhar quem é. A adivinhação vira um joguete erótico em que Sérgio explora com as mãos o rosto e cabelo da mulher, a fareja para identificá-la. Parece ser apenas uma performance de flerte, uma desculpa para o contato, mas viremos a perceber que assim é como ele (re)conhece tudo no mundo: pelo tópico, pelo que lhe excita de imediato. Ele pega, investiga, usa, descarta, vai embora. A surpresa pode fazê-lo subitamente defensivo. Antes de destampar seus olhos, Fátima (Beatriz Torcato) o beija na boca, e ele se afasta abruptamente, xingando-a e rosnando se ela se aproxima. Então finge-se de morto, ganindo quando ela lhe chuta tentando “acordá-lo”. 

Seu comportamento pode não ser tão estranho a priori porque reconhecemos ser ele um homem. Quando o vemos transando com outros de seu tipo em banheiros, vielas e cantos isolados, sabemos que é algo comum em seu sexo. Sabemos que homens tendem a aprender a não repressão de seus desejos, a liberação de seus ímpetos onde necessário for. Se moralmente vistos como sujos, então na sujeira serão liberados. À medida que não nos é estranho que a animalidade desenfreada do protagonista encontre consumação fácil nos lugares comuns de encontros sexuais entre machos, e que facilmente apareça um homem novo a fodê-lo, isso parece nos dizer algo sobre os homens em geral deste filme (ainda que não todos, ao menos a maioria). Sérgio também sente tesão por Fátima, que lhe desejava, mas ele a destrata depois que transam, e mais tarde tenta estuprá-la. Ele faz mais sexo com homens porque é mais fácil encontrar um disposto a transar onde quer que seja e sob qualquer condição, não precisando de mais que um olhar faminto e um lamber de beiços. Homens são acostumados ao ciclo de utilitarismo sexual, ainda que isso os machuque – e o olhar de alguns dos amantes de Sérgio dirigidos a um extracampo sem retorno marcam contraste com a frieza do protagonista.

Sérgio também não vê moral nem poder barrando-lhe o desejo, ele habita e age no mundo sem noção de hierarquia. Quando vê um policial amarrado e amordaçado numa viatura abandonada, masturba-o e o abandona gozado e imobilizado. O policial não resiste; ao contrário, reaparece no filme como uma presença de forte tensão e desejo sexual recíproco, que nunca volta a ser consumado porque sempre surge um colega ou uma sirene convocando-o de volta ao extracampo. Apenas restrito do poder da farda – e mesmo dos seus movimentos -, teve o prazer liberado. Este policial, na verdade, é um escravo; Sérgio, enquanto fera indomável, é anárquico. 

Ainda na primeira parte do filme, o protagonista fica obcecado pelo cheiro que sente numa moto na casa onde vai pegar eletrodomésticos quebrados – ele trabalha na limpeza urbana local, o que muito dialoga com seu conforto pelo que é descartado. Sérgio passa a perseguir João (Andre Barbosa), o dono do cheiro: revira seu lixo, masturba-se vestindo uma sunga sua rasgada que achou na lixeira, masturba-se num vestiário lambendo a parede onde sente seu rastro. Invade sua casa, mija em sua cama. É essencial lembrar que Sérgio, apesar de animal, não é criança nem cachorro. Tem corpo, força, gana de homem crescido. Não é um frágil projeto de gente, ou o melhor amigo do homem. Sérgio é um predador, e sua presa é João. Enquanto criatura, não tem noção alguma de valor ou de higiene. Sua afinidade com a “sujeira” moral é exatamente a mesma que com a sujeira física, com o fétido. No último ato, depois de transar novamente com o homem algemado do início (e com a mesma roupa preta), tenta sem êxito raptar seu objeto de desejo usando a violência. Acaba fugindo da polícia no caminhão de lixo, e no lixão é descartado. Come frutos podres, bebe água barrenta. Aqui chego na mistura entre o comer e o expelir comentado na cena de apresentação, pois aqui está o protagonista vestido assim como quando nasceu a nossos olhos: como criatura de látex. Mas, agora, diferentemente, não só está jogado no mundo, como chafurdado na merda pelo mundo expelida. Vive uma extensão hiperbólica de como já vivia: sustentado pelas sobras, pelo que já passou pelo consumo das gentes e dos vermes. Estamos vendo um filme sobre um homem pré-histórico no meio do capitalismo tardio; a única coisa que separa um do outro, afinal, é esconder sua podridão. 

A aparência de Ricardo Meneses ticar cada caixinha do padrão de beleza clássico e hegemônico dificilmente é coincidência: é um corpo que desperta o tesão aprendido, e que, no filme, é movido por um tesão inerente, bruto, quase intransitivo. Pode ser até que nos excitemos, que nos toquemos ao longo do filme. Mas o que se faz do nosso tesão quando Sérgio ataca violentamente o rapaz que desejava e o abandona, com mãos, canelas e boca constritas de fita adesiva, na rua? Quando, com a roupa de látex manchada de esgoto seco, come lixo? O corpo trajado de fetiche, radicalmente despido de sua humanidade – e agora também da forma humana -, não hesita. Vaga, fareja, come, fode, no meio da rua ou no meio do lixo. Mas nós sentamos e o observamos. Em enquadramentos estáticos, alongados; planos entregues à contemplação do gesto cru, porém também possíveis eretores do ruminar quando a duração esgota o estímulo direto do gesto. Sérgio não questiona seu desejo, mas nós questionamos o nosso o tempo todo. E, em algum momento, nos dá o estalo: olhamos Apolo, mas vemos um chacal. 

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