Por Luiz Soares Jr.
“A compensação consiste, portanto, em um convite e um direito à crueldade”
Nietzsche, Genealogia da moral, segunda dissertação.
“A História influi no mito”
Alain Moreau, A fábrica de mitos
A abertura de Nope já articula o retorno da animalidade recalcada pelo digital, anátema atual pelo menos como em seus abusos publicitários da história do cinema, como um programa: o macaco da propaganda de luz chapada e ponto de vista único se rebela e assassina os membros da equipe, mas para apurar a elaboração diegética deste crime precisaremos esperar um quarto do filme decorrido. O fato de que Peele o antecipe como um emblema icônico nos créditos de Nope, porém, o mitifica de antemão como a imago-mater que vai estruturar os itinerários desta alegoria mimética sobre a volta triunfal da animalidade à cena do cinema mainstream. Como filme de horror inter-galáctico com seu que de unheimlich pastoral, de vitupério panfletário antirracista também, pois na era que vige tudo é possível amalgamar em uma sincrética síntese alinhavada pelas bordas de filme anfíbio: filme do seu tempo, Nope é exemplar, isso não há de negar, pois volta a assinalar ao plano de cinema, agora em sua vertente de uso e leitura digital, um vetor de revelação. Basta prestar desmesurada atenção, uma atenção de leitura espaçada pela proteção do escudo de Perseu, ou tela de cinema, e tudo te será dado conhecer dos insondáveis mistérios do ser, mesmo o inominável do totalmente outro, como a aparição da Nuvem com n maiúsculo, antecipadora em forma de dejeto sublime da máquina-alimária. É filme eminente do fora de campo também, como o plano frontal dos cavalos de Muybridge enquadrados em pillarboxing e o macaco assassino da série de TV nos impõem, pois estes só nos serão desvendados em sua função simbólica no filme no a posteriori da revisão orientada.
A pradaria vasta e ressoante onde tudo se dá à triangulação heroica de protagonistas (a que vai se acrescentar um quarto, a ser expiado no arremate do filme, como todo o classicismo de que é imunodependente, com sua câmera contemporânea de Sjostron e Lupu Pick e sua libido aventureira hawksiana), os travellings fulgurantes dos cavalos em fuga, e finalmente a rentrée em Cena do gênero sob sua forma mais espetacularmente canônica perto do desenlace são demonstrações na carne do filme de que o western tardio é aquele que assiste em crescendo de épica niilista à desaparição da figura humana sob a sombra do inominável, de que é paradigmática a belíssima cena da abdução, num coro de choro e ranger de dentes, da plateia fascinada pelo espetáculo tanatológico; se o western clássico era o lugar onde esta figura lutava bravamente para se impor à atonicidade de Gesta da Natureza indômita (os índios incluso, como fermento orgânico e ethos reativo de dizimação da paisagem pela máquina de guerra), em Nope o processo já está acabado: assistimos apenas a uma espécie de dispositivo fantasmático, diegético (a grande cidade-simulacro encimada pelo cowboy gigante de desenho animado, que vai ser a chave de arremate do filme) e devedor de fora de campo tópico, com o en abîme do filme foto-montado como um legitimamente etiquetado “Documentário” dentro do filme; se é documentário o que se alardeia aqui com ênfase de programa, a razão, supomos, está em que o objeto a ser descrito pelas agruras cinema verité do gênero inaugurado pelos Lumière é inverossímil, inacreditável, inimaginável, da ordem de tudo aquilo que não pode se encaixar sob a rubrica do documentário ou possuir pretensões de preenchê-la: “Não é uma máquina, não é um navio, não é uma nuvem; é um bicho, e territorialista”.
Este semi-western tardio (coetâneo do sitcom e dos constructos organogramáticos de jogos virtuais) assombrado pela aspiração, efetivada sob a égide da montagem embora, da verossimilhança lumièriana a qualquer custo é um compêndio sobre as teratológicas armadilhas fenomenológicas do tête à tête do ser humano com o sublime. Temos duas condições que Nope preenche exemplarmente, e ambas sob a tutela do tratamento da figura: o esqueleto de western sepulcral, com seus tropos e rubricas de cooptação do cenário natural pelos idioletos do texto-arquetípico da história do cinema, como os cavalos espavoridos que, decalcando a natureza sobrenaturalmente romântica de Nosferatu, pressentem a iminência do horror, além da referência um tanto quanto atropelada na fala de Emerald Haywood à irmã entertainer até aos cavalos de Muybridge, que comparecem na sequência de créditos do filme.
Um estudo mais propriamente centrado nos atalhos e nas rotas de fuga pregnantes da figura humana: com seus sustos-raptos pré-ensaiados (há uma moça que se esgueira por trás de Angel, o rapaz de cabelo descolorido do magazine, assustando-o quando surge), suas crianças fantasiadas de ETs delgados, seus cavalos flamejantes e sua espectadora desfigurada pela experiência acidentada do sitcom na cena da abdução coletiva, Nope é antes de tudo um filme que problematiza a figura humana e seu pano de fundo como o recôndito reduto da monstruosidade, como a possível massa de modelagem do interdito, de que o monstro enquanto tal vai consistir na espoliação grandeur Nature de suas potências de incorporação extática, um tanto como lá está na descrição da Medusa de Francis Ponge na Defloração das flores. Medusa esta símbolo falocrático eminente para se ativar a rede de correspondências miméticas e fenomenológicas de que o filme vai haurir sua potência mitológica: “(…) aquela que efetiva uma reverência extasiada a todas as suas bordas. Em Nope, estas bordas possuem invólucro duplo, reversível, e se imantam respectivamente: elas são humanas e naturais e urdem um filme que nos atinge pelo tempo (o sitcom , o digital como registro atual, sem grão e presença) a partir de grandezas e de escalas muito essencialmente da origem, entendendo-se esta como a percepção primeva do ser humano em confronto com o mundo da, aí; do fundo vítreo de seu enfrentamento com a perigosa tarefa que consiste em dar conta de um mundo, natural e cultural, na clareira da representação, Nope arregimenta distâncias vertiginosas de oráculos definitivos ou processuais, históricos para entender o que se passa durante o regime de virtualidade a fórceps do nosso tempo, e neste recuo acidentado recupera o clássico, mesmo que talvez em sua última aparição epocal. De Eurípedes ao Sartre do Imaginário, de Lumière e Chomon às texturas excremenciais dos filmes de ação de Kurt Kren, Nope, talvez sem dizer expressamente mas segundo um regime de analogias de que a crítica deve se servir em seu processo de decifração hermenêutica, nos conduz, pelo menos em seu núcleo central concernente à ideia de um eterno retorno do recalcado da natureza no seio asséptico do digital, o filme de gênero grandiloquente em tempos pós-grandiloquentes não deve fazer olvidar.
Para o Theodor Adorno da Dialética do iluminismo, o recalque da animalidade foi uma das causas secretas para o anti-semitismo que vicejou na Alemanha de forma cataclismática no século 20; Hitler, não por acaso, se referia aos judeus como ratos sujos, e talvez sem querer acertava com uma intuição profunda em demasia para seu narcisismo de pintor naïf barato: o rabi, ensimesmado demais com as reflexões talmúdicas sobre D’us e seus labirintos, certamente não tinha tempo nem ocasião para coisas comezinhas, como fazer a barba ou tomar banho; a visão terrífica da Natura em estado naturata deveria parecer ao soldado de caserna, ao oficial prussiano, ao burguês escrevinhador da Alemanha profunda um passaporte perceptivo para o inferno; esta é uma intuição de natureza sofística, pois eleva aos cimos da investigação filosófica aquilo que deveria ser reservado aos baixos: os trabalhos subterrâneos da pulsão, as intermitências da Força e sua ressonância fantasmática, mas para a arte, lugar onde a Verdade se revela no sensível ( Febo), ela se revela de vertiginosa validade.
Nope é um filme que reflete en abîme, tematicamente sobre este exílio que atualmente é nosso: com a chegada do digital, com o advento histérico do culto à virtualidade das imagens quaisquer (e não, como no classicismo, do plano de cinema, com suas mediações características: chiaroscuro, montagem teleologicamente orientada, contracampo litigante para a sobranceria do campo como locus de manifestação), alguma coisa de muito nobre e muito vetusto se perdeu: a presença, o ser aí do mundo capturado no in vitro da lente, a empreinte de verité fotográfica baziniana; é claro que os meios de captura e processamento da imagem permanecem , em termos de princípio, os mesmos, mas a tendência da imagem digital ao aparato de limpeza excessiva, de equilíbrio das gradações e de perda do grão- em suma: de propreté publicitária, ameaça destruir o laborioso Geschik (destinação heideggeriana) de uma arte tardia que pela primeira vez na história humana (Michel Mourlet) soube conservar a realidade capturada por suas mediações com os meios da própria realidade, sem adotar os artifícios da saturação cromática (pintura), da harmonia contrapuntística (música), da metáfora (literatura), e portanto teve com a realidade um contrato, um contato, um conatus mimético, um realismo primordial que nenhuma fantasmagoria digital vai conseguir romper.
Nope nos fala desta terrível ameaça epocal, mas tem o gênio de reverter a seu favor os novos meios, de subvertê-lo de dentro, com a força impulsiva de seu próprio dynamos. Vejamos a cena primordial para mim em que a plateia do espetáculo é devorada viva pelo monstro, configuração do retorno do recalcado (da presença, da animalidade, da essência da experiência inexperienciável do sublime) em chave espetacular que paradoxalmente deixa para a suspensão e o vazio da expectação frustrada (coisa natural, uma vez que o sujeito trocou de lugar com o objeto, e agora é sua presa) a parte do leão. A forma de Peele filmar o sublime, durante o grande espetáculo kamikase coletivo, implica um uso absoluto da contra-plongée (ponto de vista do mestre de cerimônias, aterrado diante daquilo que vê), pois o homem agora é um espectador na plenipotência da impotência para as forças miméticas que se desencadeiam, e um contracampo quântico já nos situa dentro das vísceras do monstro. Momento de terrífica beleza rilkeana, para o cinema e tudo o mais que existe além; a anamorfose da espectadora do Potemkim de Eisenstein, aquela que com o guarda-chuva dá a largada para o grand guignol da escadaria manchada de sangue, aparece com esta moça desfigurada (é uma sobrevivente da carnificina do macaco), que estrutura em rima de verso branco este processo de abdução totalitária da figura humana pelo Infigurável cósmico, que no entanto nunca esteve tão próximo de nós. As vísceras latejantes de jaculatórias sanguinolentas absorvem a matéria humana com torpor e vigor, e os entretons cor de carne do desfigurado dejeto alimentício deixam-se apreender pela percepção intersticial do espectador, que deve agora aprender a recitar a Gênesis (Carne de tua carne…) segundo um projeto narcísico menos centrado no homem, porque agora este foi descentrado e no buraco negro de sua erosão surgiu uma alimária de sangue coagulado, cujo propósito tantálico e endócrino consiste em consumir Aquele cujo projeto hediondo consistia em consumir o mundo; morceau de bravoure de ideação figurativa magnífico!
Falei mais acima em mitos primordiais, em irradiação extática, falei em Medusa; ela é o mito ocluso-manifesto intersticialmente que estrutura a experiência do Sublime descrita aqui. Todos sabemos que foi o escudo espelhado (que alguns chamam de representação) dado pela deusa Minerva a Perseu que o defendeu do olhar abjeto do monstro, matando-a: i wear my sunglasses...
O monstro sempre teve o seu quinhão de abjeção para crianças insones, mas para a sapiência dos talmudistas de todas as eras e esferas ele também foi sintoma de saúde eminente; o que seria da Beleza sem a cabeça da Medusa? O fascinum do olhar do basilisco é o fora de campo assombrado de toda a luminosidade classicista; “Não olhe para ele”.
O homem inventou a tela de cinema, mediação reflexiva, para não ter de olhar diretamente para Ele (e lembremo-nos também da pedra que protegeu Moisés, quando do cortejo da eternidade que passava, no monte Sinai); como disse ainda, Nope é um filme muito próximo de nós que anamorfiza, convoca refigurando, satura pervertendo e relê tardiamente um sinal das origens que sempre esteve aí, mas para ativá-lo é necessário (desta vez) olhar de volta para ele, emblema da aura benjaminiana; não será nosso último meeting.