Por Geo Abreu
Nossos Passos Seguirão Os Seus…, Ulton Oliveira (RJ)
Não é a Primeira Vez que Lutamos Por Nosso Amor, Luis Carlos De Alencar (RJ)
Calunga Maior, Thiago Costa (PB)
Rumo, Bruno Victor E Marcus Azevedo (DF)
A criação de memórias tem aparecido como tema em muitos dos filmes exibidos aqui em Brasília nesses dias de festival. A necessidade de pôr em marcha uma série de materiais, entre fotos e vídeos, sobre histórias que “vieram antes de nós” acabam trazendo para a discussão ideias como preservação e acesso a arquivos públicos (Nossos Passos Seguirão os Seus), a importância de arquivos pessoais para composição de histórias publicas (Não é a Primeira Vez que Lutamos por Nosso Amor) e a necessidade de registrar encontros e performances políticas, na preemência da criação de grupos de ativistas (Rumo) para que assim as “novas gerações” saibam quanta luta foi necessária para que alguns direitos básicos fossem garantidos.
Qual a relação entre produzir um documentário sobre um personagem fundamental de greves acontecidas no começo do século XX, outro sobre a formação de grupos de discussão e ação política no terreno das lutas travestis/lésbicas/gays dos anos 70/80/90 e a história de um grupo ativista negro, fundamental para que a UnB fosse a primeira universidade brasileira a implantar o sistema de cotas no Brasil? Os arquivos – públicos e particulares -, em sua complexidade de conservação, acesso e reelaboração.
Na vontade de produzir um filme como registro da existência de Domingos Passos, importante figura do movimento operário do começo do século XX no Rio de Janeiro, Uilton Oliveira encara a ausência de imagens de seu personagem a partir da produção de episódios ficcionais com os quais intercala o discursivo do filme. Entre páginas de jornais e publicações operárias vai montado uma memória possível de Passos e apresenta um procedimento que que tem se tornado comum nos documentários contemporâneos: buscando na ficção a composição das lacunas que o material de arquivo traz.
Em Não é a Primeira Vez que Lutamos por Nosso Amor, Luis Carlos de Alencar se baseia numa robusta pesquisa sobre a história dos movimentos e associações travestis, lésbicas e gays brasileiras, suas histórias, os núcleos regionais na Bahia, em Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, além de trazer em paralelo também alguma história de associações de caráter semelhante surgidas nos Estados Unidos e as discussões que pautaram as reivindicações destes movimentos entre as décadas de 70 e 90.
Contradições internas, as tentativas de aproximação com o movimento operário – aquele mesmo, do ABC Paulista, que nos rendeu um ex-operário presidente – e medidas necropolíticas aplicadas principalmente sobre corpos travestigêneres no Brasil, muito antes que o termo virasse moda, são alguns dos assuntos abordados pelo longa documentário que cumpre papel importante na organização da memória dos movimentos políticos de contestação da binarismo heterossexual. Vale frisar a importância do acesso à arquivos particulares dos entrevistados, ressaltados pelo diretor durante debate pós-sessão.
Nesse sentido também, não fosse uma escolha dos próprios membros do coletivo EnegreSer por uma autoprodução da memória e a salvaguarda desse material em arquivos particulares, um filme tão potente quanto Rumo – dirigido por Bruno Victor e Marcus Azevedo -, talvez não fosse possível. A história do grupo de estudantes negras que se reuniu para reivindicar não apenas as cotas quanto a própria respeitabilidade das existências pretas nos cursos da UNB, acabou por se auto afirmar, na medida em que muitos da grande equipe envolvida na produção do documentário é fruto desse processo contínuo de luta.
“Produzir-se à frente, como uma memória do futuro”, frase do filme Calunga Maior, de Thiago Costa, arremata a ideia de que, para além da pesquisa em arquivos já existentes, é a própria produção de material que se impõe hoje, conscientes de que, independente de quantas gestões antidemocráticas passem por nós, a luta por direitos entre as comunidades negra, indígena, travesti, LGBTQIA+ é uma constante. Pensar seriamente sobre arquivos particulares como alternativa para a não preservação de arquivos públicos demanda experiência no auto registro, na produção de memórias escritas dos encontros, além do cuidado com a integridade desse material.
Em Rumo há também a escolha por uma auto ficção que parece ocupar o lugar de ligação entre os blocos documentais. A solução de sair de um momento ficcional, em que a câmera acompanha um personagem que com a simples quebra da quarta parede, passa da ficção ao documentário, se apresentando e revelando sua ligação com a UNB e o movimento negro contemporâneo que vive a universidade pública em Brasília hoje é um dos maiores acertos do filme.
Sugere uma transição sutil entre tempos sobrepostos, como a própria ideia de escrever o passado enquanto atira uma pedra hoje. As várias possibilidades de uso e também de confronto com o arquivo que estes filmes apresentam sugerem ainda uma abertura para que, numa ecologia em que tantas imagens são produzidas o tempo todo, filmes possam cada vez mais se apropriar desse acervo quase infinito, reelaborando passado e presente na intenção de produzir imagens de futuro para o cinema brasileiro