Por Geo Abreu
“A única coisa que nos interessa são as nossas lendas, as lendas da Ceilândia.”
Em questão de meia hora, Mato Seco em Chamas resume sua história num prólogo: Chitara se transforma numa das gasolineiras mais respeitadas da Ceilândia e, a partir de seu lote no bairro do Sol Nascente, passa a extrair petróleo e produzir gasolina, abastecendo os motoboys da região. Enquanto aguarda o retorno de sua irmã Léa à liberdade, Chitara constrói sua reputação, atraindo inimigos que tentam tomar sua plataforma à força. Ao se impor à realidade, a heroína se firma como lenda viva daquela comunidade.
Com esse mote de odisseia – uma das personagens segue criando mundos enquanto espera o retorno da outra, que voltará para contar tudo o que viu do outro lado dos muros de uma penitenciária -, o filme acomoda essas interrupções e o desaparecimento de Léa, com cenas sobre o cotidiano do Sol Nascente – essa Ítaca sulamericana -, com a história de Andreia e sua campanha política voltada às mulheres encarceradas, e, claro, com a vida da plataforma de petróleo comanda por Chitara.
A etnografia da ficção, conceito desenvolvido por Adirley Queirós e Joana Pimenta para esse movimento que questiona as estruturas do documentário e as relações do cinema com a realidade encontra em Mato Seco seu melhor desenvolvimento. A extrapolação das histórias de vida das atrizes soma-se ao que seriam possíveis soluções para seus problemas reais executados no campo da ficção, sendo moldadas também pelo fluxo de uma história pública que acompanhamos via noticiário, e que segundo os diretores, molda o filme no seu corte final.
Num movimento pendular de ida e vinda, alguns episódios retornam, como uma história contada repetidas vezes na esquina do bairro. Esse procedimento de repetição é que garante que as trajetórias de Chitara e Léa sejam lembradas por anos, ou enquanto durem as pessoas de sua geração remanescentes do Sol Nascente.
Enquanto procedimento narrativo também, Adirley e Joana trabalham com performances públicas que ajudam a produzir uma memória do filme na comunidade: a constância do trabalho no lote, com o barulho das máquinas em atividade; a produção de todo um aparato ancorado na realidade de uma campanha política para a candidatura fictícia de Andreia (criação de comitê, realização de reuniões, panfletagem e carreata com carro som); as várias rondas noturnas do caveirão Brutus pelas ruas do bairro. A produção dessa memória do filme ajuda a criar a ideia entre os moradores do Sol Nascente de que aquele filme já foi visto.
Esse compromisso com a contra-narrativa, essa que cria memórias e se inscreve no cotidiano das pessoas, marca o trabalho dos diretores, aqui fazendo cinema para a cidade-satélite da Ceilândia que, sem uma sala de cinema sequer, tem como espelhos de si mesma os muros, as ruas e a memória de seus moradores.
É radical propor um cinema que é projetado enquanto se realiza como produto, já que essa é a única possibilidade de exibir um filme na Ceilândia: fazê-lo. Buscando suporte em outras modalidades artísticas, como a performance – da motociata, do caveirão – e a instalação – a plataforma de petróleo no quintal do vizinho– os diretores executam também uma longa observação de personagens reais pinçados da própria comunidade.
Essa observação participante dedica longos planos a um culto evangélico: onde uma criança de colo que acompanha sua mãe já começa a cantar aquelas canções, enquanto fora do templo o mundo parece escoar junto com a chuva que cai na rua sem esgoto. O baile no ônibus libera a energia daquelas mulheres de todas as cores e tipos de corpos, que se esfregam e se beijam porque o desejo das trabalhadoras precarizadas é do final de semana, é da boca das amigas, é ritmado pelo funk. Já quase no fim do filme, vemos os documentos do processo que levou à prisão de Léa acompanhados da sua leitura em voz over e é impressionante como nenhuma informação espanta porque já conhecemos muito da personagem, a partir de sua performance como narradora das próprias histórias, aquelas que não passaram pelo processualismo judicial mas, formam a figura, o arquétipo da guerreira urbana, o mito, a lenda do Sol Nascente.
Operando entre ficção e inscrição em processos reais, Adirley Queirós e Joana Pimenta levam Mato Seco em Chamas a tomar uma materialidade expandida que radicaliza não só a forma, mas a essência do cinema, a vida mesmo como obra de arte, já nem tão burguesa assim (e ainda bem).