Por Geo Abreu
Voltar ao Complexo da Maré ocupado pelo Exército. Brasil, 2015.
Em 2014, por conta dos Jogos Olímpicos que foram realizados na cidade do Rio de Janeiro, o Governo Dilma Roussef autorizou a ocupação militar do Complexo de Favelas da Maré, devido ao fato de que as principais vias expressas da cidade cruzem esse território, além da proximidade com o Aeroporto Internacional do Galeão, porta de entrada da maioria dos turistas que tomariam conta da cidade naquele período.
Neste processo, um mandado coletivo foi expedido para que qualquer residência em pelo menos duas das 17 favelas que compõem o Complexo pudessem ser alvo de buscas e invasões executadas pelos militares, sem maiores justificativas. Há excepcionalidade nessa medida? É disso que trata Mandado, longa exibido na noite de 17/11, na Mostra Competitiva do Festival de Brasília.
O filme escolhe perseguir a legalidade desse mandado coletivo, entrevistando juristas e especialistas em direito, além daqueles que atuaram junto às ONGS e demais órgãos de luta e direitos humanos durante esse episódio, intercalando esses depoimentos “especializados” com os de alguns moradores, entre eles, Cadu Barcellos, cineasta e roteirista morto num assalto enquanto voltava para casa em 2020, e Marielle Franco, a vereadora mareense assassinada junto com o motorista Anderson Gomes, que a conduzia quando o carro em que estavam foi alvejado por arma de calibre de uso restrito às Forças Armadas, em 14 de março de 2018.
Esse é o ritmo que se impõe como normalidade da perda violenta de parentes, amigos, irmãos e que envolve o documentário num clima pesado, reforçado ainda mais pela trilha sonora original que reforça a dramaticidade do assunto e algumas vezes antecipa o tom com o qual o expectador deve receber a próxima informação.
Muitas dúvidas surgiram sobre o timing do filme e seu lançamento, tantos anos depois dos depoimentos tomados e da ocupação militar que durou 14 meses, com a presença de um policial para cada 55 moradores. Enquanto escrevo esse texto, manhã de 26 de novembro de 2022, a Maré amanhece mais uma vez devastada pelas mortes ocorridas no contexto de uma operação policial que durou quase 24 horas, descumprindo os dispositivos jurídicos que estabelecem horários de início e finalização de operações em favelas, entre outras ilegalidades.
Observando as coisas por esse prisma, o da circularidade desse tipo de ação político-militar, amparada por excepcionalidades que só se aplicam a comunidade periféricas, e que tem o Rio de Janeiro como espécie de laboratório de práticas eugenistas em pleno ano de 2022, o assunto abordado por Mandado nos parece em processo e urgente.
A aposta da curadoria do Festival na escolha desse filme merece destaque, pois se alinha à proposta de apresentar “narrativas atravessadas por escombros, nas quais não há garantias.” Lembrar que nossa democracia representativa, essa mesma pela qual lutamos voto a voto no último pleito para presidência, é também aquela que, mesmo quando ocupada por representantes da “esquerda” trata a periferia como algo descartável. E aqui estamos nós, espectadores do mundo Brasil, de volta ao movimento violento da garantia de mais um dia de vida. Só mais um dia comum.