O AVILTAMENTO DA MACUMBA

Mito e Metamorfose das Mães Nagô (1981) de Juana Elbein dos Santos e Ôrí (1989) de Raquel Gerber 

por Gustavo Maan

“Oh paz infinita poder fazer elos de ligação numa história fragmentada. África e América e novamente Europa e África. Angolas, Jagas e os povos de Benin de onde vem minha mãe. Eu sou Atlântica.”  Beatriz Nascimento em Ôrí (1989)

Em um campo sujo, repleto de enxofre, lama e caranguejos, surgiu a massa-terra que formaria o homem. É o material perfeito, já que fornece a maleabilidade ideal para receber a vida: quando seca, se sustenta; se molhada, movimenta. É um equilíbrio entre duas matérias antagônicas — a rigidez da terra e a fluidez da água.

Esse parece ser um bom ponto para começarmos a pensar a macumba. Perigosamente próximo ao mito de criação cristão, estamos na realidade falando aqui do processo de criação do homem Nagô — quando Oxalá, depois de diversos testes, elegeu a lama de Nanã Buruquê como a matéria prima de toda a humanidade. Não nos importa tanto aqui saber qual dessas duas narrativas veio antes, ou qual é a genealogia de cada um desses mitos, mas entender o contexto relacional específico em que as religiosidades afro-brasileiras se encontram no Brasil.

Estar em um terreiro é antes de tudo presenciar contínuos gestos de montagem: plantar em meu corpo outros corpos e viver com isso uma experiência temporal conjugada entre passados e futuros. É viver dentre imagens vivas, que manifestam cada uma delas uma temporalidade singular — a estatueta de Pai Benedito do Congo às mukanguês dos Minkisi. Chegar e topar logo na entrada com um assentamento de Njila ou Exu, construído de interações entre coisas, pessoas e animais, todos congregados por meio da força do Nguzo que cada um desses elementos carregam consigo.

Em um contexto específico, principalmente entre as décadas de 50 e 70, foi muito valorizado dentro das ciências sociais e de um certo debate público essa  capacidade de “preservação cultural” dos terreiros de candomblé no Brasil. Esse discurso promovia principalmente terreiros de origem Jeje-Nagô, como o Gantois e o Ilê Opô Afonjá, veiculando uma ideia de tradição que perdura até os dias de hoje.

São esses terreiros, as comunidades que naquela época efetivaram um processo de “reafricanização”, de reconexão com as raízes e revitalização da forma religiosa segundo os fundamentos provindos do continente africano. Como Roger Bastide, grande pesquisador das religiões afro-brasileiras no país, chegou a afirmar uma vez, esse “seria um movimento de purificação do candomblé em relação ao aviltamento da macumba”[1]. Indo por essa linha de pensamento, estariam os terreiros em meio a uma encruzilhada, tensionados entre a preservação de uma cultura original e a perda desta em meio a perigosa interação com outras culturas.

É claro que não estamos falando aqui de uma história pacífica de contato entre diferentes povos, e sim de uma realidade repleta de violências coloniais, que saqueiam e continuam a tentar saquear dos terreiros sua capacidade agregadora. Também é preciso ter em vista que a validação da sua religião a partir de uma ideia de tradicionalidade, ou seja, de um valor cultural construído e preservado ao longo de centenas de anos, também significava receber com menos frequência as visitas das chefaturas de polícia, que exerciam a repressão estatal que perdurou contra as religiões afro-diaspóricas por tantas décadas.

Ao mesmo tempo, seguindo ainda o fio desse raciocínio, seriam outros expoentes religiosos, como os candomblés de Angola, o bate folha e as diversas umbandas pelo país afora, um rebaixamento do legado cultural africano devida sua alta transformação em solo brasileiro. Seriam formas menos preservadas, “sincréticas”, sem um fundamento sólido, que existem em reminiscência depois de serem submetidas ao jugo colonial.

Com justamente a intenção de preservar o legado africano nos candomblés de origem Yorubá, “procurando ultrapassar os encobrimentos gerados por uma política de embranquecimento e sincretismo, de cooptação e comercialização consumista”[2], a antropóloga argentina Juana Elbein dos Santos lança seu filme Iyá-Mi-Agbá, Mito e Metamorfose das Mães Nagô – Arte Sacra Negra I. Seu objetivo era propor uma nova forma de enquadramento do candomblé por meio do cinema, principalmente após alguns desconfortos com outros documentários sobre o tema.

Incomodada com a exibição de momentos rituais, Juana acreditava que era necessário superar a ideia de representação direta do transe e demais procedimentos litúrgicos, já que essa operação estaria violentando os integrantes de tais religiões. Isso aconteceria porque o sagrado em um terreiro, segundo a autora, estaria sempre envolto de um certo segredo — segredo esse desvelado pelo olhar profano dos espectadores. Ao mesmo tempo a imagem, e aqui especificamente o cinema,  carrega consigo a estima de acolher e veicular o pensamento religioso para fora da comunidade, agindo politicamente para se angariar respeito e reconhecimento dentre a opinião pública. Seria preciso então, para conciliar essas duas premissas, uma maneira indireta de se chegar ao sagrado.

Nem todos os olhos são capazes de enxergar no mar Yemanjá; na divisão do horizonte o encontro do Ayê com o Orun. É essa visualidade que Mito e Metamorfose parece estar tentando criar em nós. O filme passa pelas águas do oceano, pelo nascer e pôr do sol, destrincha penas e escamas para nos explicar o papel cosmológico das divindades femininas presentes no panteão Yorubá, enfocando particularmente a figura das Iyá Mi Oxorongá e das Yabás.

O filme inicia com uma câmera que nos mostra diversos pássaros, todos imponentes, que tem seu movimento continuamente congelado. Paralisadas, as penas se apresentam quase que completamente borradas, nos revelando que o conteúdo verdadeiramente significativo dessa imagem é o fluxo em que ela se encontra. A princípio são pássaros-natureza, constantemente intercalados com planos de paisagens naturais: o mar, a mata e o céu azul. O filme logo de início parece estar tentando criar a possibilidade da conexão — penas e escamas, pássaros, peixes e as águas, as águas e o mundo.

De pássaros-natureza, começamos a vislumbrar a ideia de pássaros-mulheres, quando dos espaços naturais, vemos trançadas as asas das Iyá-Mi o movimento de diversas mulheres negras em uma feira. Essas imagens são constantemente acompanhadas por uma narração em over que transita entre duas vozes: uma masculina, de Ferreira Gullar, extremamente analítica e explicativa; e uma feminina, não identificada, que fica responsável por entoar as conclamações às Iyá-Mi.

Fotogramas retirados do filme Iyá-Mi-Agbá, Mito e Metamorfose das Mães Nagô (1981) de Juana Elbein dos Santos

A montagem é aqui a responsável por aproximar os pássaros da natureza e das mulheres negras, sendo ela, em conjunto com a narração, as grandes veiculadoras do significado. Não temos nenhum depoimento, ou qualquer outro tipo de interpelação à câmera. O filme passeia e organiza aquele mundo sem qualquer resistência que não seja alguns olhares de estranhamento lançados em direção à objetiva.

Esse traço esquemático se torna ainda mais evidente na segunda metade do filme, quando para apresentar as Yabás, a diretora opta por um desmembramento de suas expressões sensoriais: nos mostra primeiro suas roupas, vestidas em manequins vivos que se encontram imóveis sob um fundo completamente preto; depois, em um terreiro, uma das Iaôs da casa simula sua dança fora de contexto ritual, com objetivo meramente ilustrativo enquanto escutamos a música correspondente àquela Orixá.

Fotogramas retirados do filme Iyá-Mi-Agbá, Mito e Metamorfose das Mães Nagô (1981) de Juana Elbein dos Santos

No cinema de Juana Elbein as imagens ocupam um lugar ambíguo e perigoso. Ao mesmo tempo que sua montagem pode possibilitar a visualização das interconexões criadas pelo processo religioso, elas também podem ocupar o papel de profanação da tradição. O risco em usar as imagens é respondido pela autora com uma estrutura de montagem rígida, que apesar de nos proporcionar lampejos belíssimos do pensamento engendrado pelo candomblé, o aprisiona em uma forma ascética. Não podem haver erros interpretativos, a tradição deve ser clara e intocável. É como os planos em que as aves alçam voo — congeladas para nos mostrar o seu movimento.

Há também nessa operação um outro dado relevante. Ao inserir o discurso religioso dentro de uma estrutura tão bem amarrada, a antropóloga acaba por remover dos participantes religiosos seu verdadeiro poder de agência, sendo agora ela a grande organizadora daquele sistema. Ou seja, na pretensão de salvar a tradição de uma possível contaminação, a diretora concentra em suas mãos a capacidade de produzir significações. Não é o corpo em transe que me diz “Yemanjá”, ou “Oxum”, a partir de uma modelagem específica de gestos e sons, mas a montagem do filme que ordena cartesianamente os componentes dessas divindades.

Mesmo assim, acredito que Mito e Metamorfose apresenta um tipo de gesto que abriu portas para novas perspectivas dentro do cinema documentário nacional. Apesar de reticente, Juana estruturou grande parte do dispositivo de seu filme acreditando no potencial conectivo da imagem fílmica. Frente a ausência do testemunho e da vivência direta do terreiro, foi preciso o fortalecimento de um verdadeiro discurso cinematográfico que desse conta de veicular os valores do candomblé. É um movimento de transposição da forma ritual em forma cinematográfica que precisa ser reconhecido. Essas experimentações visuais podem aqui tomar, inclusive, a conotação científica do termo. Juana criou um laboratório, com condições de temperatura e pressão extremamente reguladas, para que sua amostra não fosse contaminada. Realizou pequenas explosões programadas, rapidamente contidas antes que fugissem do controle.

Estabelecendo relações de contiguidade e distanciamento com Mito e Metamorfose temos Ôrí, longa de 1989 dirigido pela também cientista social Raquel Gerber e conduzido pela fala da militante e historiadora Beatriz Nascimento. O documentário, que certamente bebe muito dos caminhos abertos por Juana (que é inclusive personagem do filme em um debate na Quinzena do Negro na USP), parece dobrar a aposta em direção à dialética da imagem.

Logo de início, Ôrí faz questão de nos informar sua localização. Beatriz, que narra em primeira pessoa grande parte do filme, demarca o seu interesse em estar não em uma margem ou outra do Atlântico, mas em seus entremeios. Não é um filme portanto de substância ou de essência, mas de movimento e relação.

Pretendendo falar sobre o movimento negro das décadas de 70 e 80, levantando uma discussão sobre a influência basilar dos africanos na edificação do país, o filme foge de um esquema expositivo e demasiadamente descritivo para construir uma história baseada nos sentidos. Passamos por bailes de soul music, pelos ensaios da Vai-Vai, reuniões fundadoras do MNU, manifestações, saídas de Iaô, e nenhum desses lugares é em momento algum definido enciclopedicamente. O baile, o terreiro, a escola de samba e o movimento político são dispostos como em um sistema. Nenhum ponto se explica sem o outro, tudo só existe a partir da relação.

Nesse sentido, temos uma abordagem que vai em direção contrária a de uma idolatria da pureza. O que importa, justamente, é a capacidade de criar vínculos — esse é o legado da tradição. Muito embebido de outras epistemologias africanas, principalmente aquelas provindas dos povos Bantus de Angola e do Congo, Ôrí celebra a capacidade de sobrevivência, e não de preservação de uma cultura. Essa diferenciação é importante se levarmos em conta que sobreviver é necessariamente se manter vivo, ativo, e consequentemente, em movimento.

Ora, se desde o início somos nós uma profusão de elementos — carregamos em nosso corpo-lama essa ideia — como podemos inserir nesse debate uma ideia de pretensa pureza? A interação entre a terra e a água está longe de ser pura, sendo o que realmente importa desse contato a contaminação mútua estabelecida: um pouco de água na terra, um pouco de terra na água. Quando vejo uma imagem de Santa Bárbara em um terreiro, está ali não a santa católica, nem mesmo Iansã “disfarçada”, mas sim uma amálgama desconcertante entre essas duas figuras. Essa é a macumba. Não a macumba como designação genérica de um culto religioso sincrético, mas ela como uma categoria de pensamento, uma maneira de se posicionar frente ao mundo. É a possibilidade de encarar as coisas como coisas, e nesse sentido preservar sua multiplicidade ontológica.

Em uma cena específica, Ôrí parece operar de forma magistral o que seria um cinemacumba. Estamos na Serra da Barriga e escutamos o historiador Joel Rufino dos Santos proclamar um discurso na inauguração do memorial Zumbi dos Palmares. Esse plano é invadido por uma conclamação à Ogum que dá início a uma fusão em que  uma recém feita Iaô do orixá guerreiro, em transe, vem em direção à câmera. No som, escutamos agora a sinestésica trilha sonora composta por Naná Vasconcelos. O bradar do terreiro é o disparador para uma sequência retrospectiva, em que passamos por diversas palmeiras, pelas cenas das manifestações em São Paulo, pelos seminários da Quinzena do Negro, e que culminam em diversos planos dos rostos de figuras específicas como Hamilton Cardoso, Eduardo de Oliveira e Oliveira e Beatriz Nascimento.

Fotogramas retirados do filme Ôrí (1989) de Raquel Gerber

Nesse momento temos a mediação entre uma coletividade política (o movimento negro) e uma subjetividade individual (Beatriz, Eduardo e Hamilton), passada pelos elementos naturais (as folhas de palmeira relacionadas à Ogum) e intermediadas por figuras atemporais que surgem por meio de um discurso histórico (Zumbi) ou pelo transe (Ogum). Não se trata aqui de uma simples concatenação de planos, mas a construção de um pensamento por meio de imagens e sons que é possível graças a um entendimento de que todas essas substâncias só existem em profusão umas às outras. É o vislumbre de uma vida política que necessariamente passa pelos elos que unem a individualidade da coletividade, o presente dos seus passados e futuros.

A montagem opera um verdadeiro transe, ofertando o corpo fílmico como intermediário de uma infinidade de pessoas e discursos. É um movimento contra a fragmentação colonial, que procurou e ainda procura com todas as forças quebrar essas redes de conhecimento que conjugam tempos passados a fim de uma insurgência no presente. Vemos em Ôrí uma aposta radical pela dialeticidade,  em que se faz questão de manter a imagem no seu lugar por excelência: em movimento.

O filme não poderia ser encerrado de maneira mais precisa do que com a proclamação de um poema, escrito por Beatriz, e direcionado à Zumbi. Nele vislumbramos a possibilidade arrebatadora de uma história transatlântica, que retira das pessoas o peso esmagador do sujeito individual moderno e as devolve seu lugar no mundo e na história. O exercício de uma metodologia forjada entre oceanos, giras e sambas, acompanhando o mundo em seu movimento sem fim.

Para ti, comandante das armas de Palmares

Filho, irmão, pai de uma nação.

O que nos deste? Uma lenda, uma história ou um destino?

Oh Rei de Angola Jaga! Último guerreiro Palmar

Eu te vi Zumbi, nos passos e nas migrações diversas dos teus descendentes

Te vi adolescente sem cabeça e sem rosto nos livros de história

Eu te vejo mulher em busca do meu eu

Te verei vagando, oh estrela negra!

Oh luz que ainda não rompeu

Eu te tenho no meu coração, na minha palma de mão verde como Palmar

Eu te espero na minha esperança

do tempo que há de vir.

Fotograma retirado do filme Ôrí (1989) de Raquel Gerber

[1] Página 238 de “As religiões africanas no Brasil”. São Paulo, Pioneira. 1978

[2] Trecho retirado da proposta do núcleo cinematográfico do SECNEB, instituição produtora dos filmes de Juana Elbein dos Santos e Carlos Brasjblat. Disponível em: < >

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