CINEMA DE GIRA: NOTAS SOBRE ALGUNS FILMES-MACUMBA BRASILEIROS

por Geo Abreu

Rituais, segredo, discriminação, comida e comunidade. No geral, são esses os termos que me vêm à cabeça quando penso na palavra macumba. Muitas vezes ligado a enunciados preconceituosos, o termo se confunde com a história dos africanos trazidos ao Brasil à força de uma assimilação violenta. Violência essa que, fundante, segue marcando o país-brasil de forma indelével e poucas vezes é transformada em algo positivo.

Acredito que caiba ao cinema, como plataforma de articulação daquilo que excede o real, apresentar algumas imagens-feitiço, com o propósito de nos aproximar do universo dessas religiosidades mestiças, de traços africanos e também indígenas.

O agnóstico muitas vezes elabora objetos de culto em lugares não-convencionais. A cultura pop e o cinema produzem um vasto cabedal de possibilidades nesse sentido: de musas a autores, e frames como extratos de imagens em movimento que tornam-se objeto de uma adoração tanto diversa quanto aproximada de uma devoção de cunho quase religioso. Muitas vezes também é o léxico do cinema que nos faz relacionar com o desconhecido: paisagens, sotaque e catarses.

Sem a intenção de criar qualquer lista de filmes imperdíveis sobre macumba, esse texto vem convocar algumas produções nacionais em que rituais, deidades e símbolos ligados aos cultos afro-indígenas praticados no Brasil sejam tema ou conduzam a narrativa. Dentre diretores conhecidos, dois nomes se destacam: Nelson Pereira dos Santos e Rogério Sganzerla.

Partindo uma ideia de cinema popular brasileiro, Nelson Pereira e Sganzerla utilizam expedientes diferentes para alcançar talvez o mesmo objetivo: levar às telas filmes cujos temas encontrem pouso entre uma audiência de trabalhadores pobres e migrantes das periferias das grandes cidades brasileiras.

Em O Amuleto de Ogum, Gabriel chega ao Rio de Janeiro em busca de melhores condições de vida e acaba esbarrando com o crime organizado da Baixada Fluminense dos anos de 1970. Entre a história da Baixada e a recorrência de migrantes nordestinos que ainda chegam ao Rio de Janeiro todos os dias, a religiosidade do protagonista o transforma no operário perfeito para a função de criminoso profissional. 

O Amuleto de Ogum de Nelson Pereira dos Santos

A ideia do bandido de corpo fechado aqui serve a pelo menos dois propósitos: conjugar a narrativa dos marginais míticos da periferia – aqueles que sobrevivem a atentados e tiros e cujas histórias são como ouro para o jornalismo sensacionalista –  e a macumba como prática de produção dos corpos.

A fim de proteger o filho da violência que acerta quase sempre corpos negros e periféricos, a mãe de Gabriel o leva ao terreiro para que seu corpo seja preparado e fechado, pondo a própria alma como garantia da proteção do filho. Assim é criada uma deidade propriamente brasileira, o filho de mãe pobre e solteira cujos dribles da morte estão condicionados à fé de sua mãe, transubstanciada através desse ritual, cujo amuleto o rapaz carrega e no qual deposita bravura e a capacidade de se meter em encrencas (às expensas do coração materno). Aqui os filmes de herói e de boneco se encontram com a linguagem da macumba, forjando um herói, brasileiro como poucos, nesse que é um clássico do cinema “BR”.

Em Copacabana, Mon Amour, outra figura periférica, Sônia Silk, se vê perseguida por um fantasma ao mesmo tempo em que precisa descer o morro e se prostituir no calçadão de Copacabana para sustentar a família, ao invés de seguir seu sonho de cantora. Em paralelo, seu irmão, parece estar enlouquecendo amedida que assume a paixão proibida que sente por seu patrão.

Copacabana Mon Amour de Rogério Sganzerla

Duas figuras perturbadíssimas como muitas que transitam entre centro e periferia das grandes cidades brasileiras, marcadas por um adoecimento psíquico que os conduzem a atos impensados, pequenos/grandes crimes, e novamente, às páginas ou telas de notícias populares. Em meio ao tumulto de suas vidas, Sônia e seu irmão encontram o pai de santo Joãozinho da Gomeia e mesmo sua benção já não é capaz de apaziguar os ânimos dos personagens, perdidos entre a sobrevivência e talvez a falta de dedicação ao culto de sua ancestralidade, que talvez lhes restituísse a força que vemos no protagonista de Amuleto de Ogum.

Helena Ignez e sua performance-transe faz muitos dos melhores momentos de Copacabana, Mon Amour e algo do gestual lembra muito os transes filmados em Ritos Populares, Umbanda no Brasil, que apesar de posterior a Copacabana, mostra que tanto o diretor quanto a atriz fizeram suas pesquisas em torno do tema e de como performa-lo. Otoniel Serra e seu personagem possuído de paixão, que oscila entre gritos e pontos de macumba, descendo e subindo o morro, opera num registro mais livre e espontâneo, com uma capa que remete aos parangolés de Hélio Oiticica, com sua pesquisa sobre corpo e samba espelhada aqui numa gira urbana e esquizofrênica que Serra conduz tão bem.

Falando em esquizofrenia, é interessante como estes filmes servem também para desmistificar alguns preconceitos com a macumba, como seu caráter feral e distanciado da ciência: em Jubiabá, o pai de santo interpretado por Grande Otelo geralmente é encontrado em casa em meio a muitos livros, o que nos leva a crer que sua sabedoria venha de uma conjunção entre experiência, leituras e sua missão perante àquela comunidade da periferia de Salvador; em Ritos Populares, o personagem principal também é um homem de idade, que diz ter aprendido tudo que sabe sobre a religião com seus guias astrais, que por sua vez lhe conferiram a missão de escrever sobre a mitologia, os orixás e curiosamente diz acessar esses conhecimentos por via de duas entidades que lhe visitam: um preto velho e um pajé indígena, “de tempos pré-cabralinos”, como diz a certa altura do documentário.

De todos os filmes aqui citados, Bahia de Todos os Exus é aquele de caráter mais científico, próximo a uma pesquisa de campo, com um pesquisador curioso portando microfone e gravador em meio a uma ladeira de Salvador. Em seus 45minutos de duração, o entrevistador visita diversas autoridades no tema, entre cientistas, artistas e pessoas comuns para entender a importância e a natureza mutante da figura de Exu entre os cultos afro  a Bahia.

Sem condescendência, o filme apresenta a naturalidade da feitura de um ebó para Exu, com uma galinha sendo decapitada e o sangue sendo espalhado sobre a comida do santo. Suas explicações sobre o Ifá, as diversas formas como Exu se apresenta e aqueles que guardam relações muito particulares com essa entidade de tantos nomes fazem dele um documento tanto textual quanto imagético sobre as relações entre a religiosidade e as camadas populares.

Nas favelas, nas organizações trabalhistas e no terreiro todos os personagens desses filmes-macumba poderiam cruzar suas histórias e desdobrá-las em diversas outras, todas elas com um fundo de brasilidade muito peculiar e violento, como a própria história desse país, rico de tantos personagens e contos míticos populares. Pela valorização dos filmes-macumba e seus desdobramentos possíveis.

Referências:

Bahia de Todos os Exus. Dir.: Tuna Espinheira, 1978.

Copacabana, Mon Amour. Dir.: Rogério Sganzerla, 1970.

Jubiabá. Dir.: Nelson Pereira dos Santos, 1986.

O Amuleto de Ogum. Dir.: Nelson Pereira dos Santos, 1974.

Ritos Populares, Umbanda no Brasil. Dir.: Rogério Sganzerla, 1986.

Sem Essa, Aranha. Dir.: Rogério Sganzerla, 1970

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