Por Bernardo Oliveira e Luís Flores
“A história da câmera de filmagem coincide com a história das armas automáticas. (…) Para poder mirar e fixar objetos em movimento no espaço, tais como pessoas, há dois procedimentos: atirar e filmar”.
(Friedrich Kittler)
1. O controle dos detalhes
Partindo da linha da reflexão do teórico das mídias Friedrich Kittler, que associa a gênese do cinematógrafo ao desenvolvimento das tecnologias de violência e controle, podemos abordar o filme-ensaio A saída dos operários da fábrica (1995), de Harun Farocki. Na ocasião dos cem anos do cinematógrafo, considerando que a visão das máquinas se tornava um instrumento sistemático de ordenação e coerção da realidade, o cineasta alemão retomou a cena primordial em que os irmãos Lumière filmam, na empresa de seu pai, os empregados deixando o galpão da fábrica. Farocki observa que “nunca antes se havia visto imagens do movimento das pessoas. É como se a partir desse filme o mundo passasse a ser visível.”
E o que se vê nesse que é considerado o primeiro plano capturado pelo cinematógrafo?
A princípio, Farocki nota que há um enquadramento: os trabalhadores aparecem na tela para desaparecer logo em seguida, na medida em que fogem desse enquadramento. As primeiras imagens do movimento do mundo são marcadas, portanto, por esse dinamismo, por essa troca contínua entre o que é enquadrado e o que foge do quadro. E ele prossegue: esse filme se destina, sobretudo, a mostrar que se pode ver movimento nas imagens. E que movimento é esse? Farocki observa que uma força de atração, uma força magnética parece puxar os trabalhadores para fora da fábrica, “como se soubessem que fora da fábrica tudo se torna melhor, tudo se torna outra coisa de contrário à vida na fábrica.”
Então, ele desdobra o problema: a fábrica não ostenta letreiros suntuosos, nela não se visualiza nenhum signo de poder. Também não se pode visualizar, ainda, o poder dos trabalhadores. Contudo, por conta do regimento interno das fábricas, todos os operários saem e entram juntos. Outras imagens de trabalhadores deixando as fábricas em que trabalham são exibidas, como que reforçando o argumento. Farocki, então, mostra alguns regimes de identificação entre as imagens de porta de fábrica e os signos do poder: Emden, 1975, saída da fábrica da Volkswagen; Detroit, 1926; Lyon, 1957; Berlim, 1934, funcionários da Siemens saem da fábrica e se juntam a uma marcha nazista. Em todas essas saídas de porta de fábrica, as pessoas andam com o passo apertado, acelerado.
Farocki mostra uma passagem quase secreta entre o enquadramento e a expressão do enquadrado. Ele diz: “O portão da fábrica estrutura os trabalhadores e as trabalhadoras sincronizados conforme a ordem de trabalho, e essa compressão produz a imagem de uma força trabalhadora.” Já não se trata, portanto, de um “exército de figurantes”, nem de operários isolados: antes, a captação da imagem torna possível a visão de um “operariado”. Farocki percebe que o enquadramento acaba por impregnar a imagem com um aspecto linguístico saturado de sentido: uma visão dos “explorados”, do “proletariado industrial”, dos “trabalhadores braçais”, da “sociedade das massas”. A partir da leitura de Farocki, percebemos que se trata de uma imagem rica do ponto de vista de uma semiótica da multidão e das lutas sociais que atravessam o século XX.
Ora, uma contra-análise do caráter aparentemente primordial do curta dos Lumière mostra, ao longo da história das imagens filmadas, uma série de movimentos de entrada e saída: enquanto a câmera grava, o operariado está de costas para a fábrica. Quando saem do enquadramento do plano, escapam da fábrica. A câmera mira, aponta, filma e acerta em cheio um coletivo em franco processo de escape, de atração quase magnética em sentido contrário àquele que os conduziria para dentro da fábrica. Enquanto filmados, são representados coletivamente. Enquanto filmados, também são vigiados.
Quer dizer, há um trânsito semiótico nas imagens de trabalhadores saindo da fábrica que dá conta de múltiplos movimentos de atração e retração, de entrada e saída, de concentração e dispersão, de captura e escape. Buscando outras perspectivas para essa instabilidade da imagem cinematográfica, Farocki escreve: “Desequilíbrio e compensação: é esta a lei do movimento nos filmes.”
Quando falamos da câmera nos referimos, portanto, a um objeto técnico que registra um conjunto de movimentos de desequilíbrio e compensação. As tensões entre trabalhadores explorados e trabalhadores organizados, entre vigilância e linhas de fuga, habitam os fotogramas que se acumulam desde a primeira filmagem feita por um cinematógrafo: os desequilíbrios da vida do explorado, as compensações da luta por emancipação. E vice versa! Estamos no centro de uma forte sugestão quanto ao poder coletivo que a câmera enquadra: ambos os poderes, recusa e resistência, são como que captados em sua disjunção mais imediata, em seu “desequilíbrio” constituinte, em uma espécie silenciosa de campo de disputa.
Paradoxo de absolutos: ao mesmo tempo em que apreende a dinâmica do trabalho (industrial) e a torna passível de visibilidade, capturando e propagando as imagens dos operários, o cinema está impregnado por um processo de contínua invisibilização do trabalho, que se associa à racionalização e ao controle crescentes do espaço da fábrica. Em meio a episódios de conflito ou instabilidade, ligados a signos de insurgência ou de força proletária, Farocki insere um segmento publicitário com portões de aço e acessórios de segurança, indicando a imponência do aparato de controle para conter a violência dos trabalhadores. Fica nítido que as técnicas de produção e as técnicas de vigilância compartilham, na estruturação da vida social, de princípios depurativos e conservadores, desde a defesa dos limites da fábrica (propriedade privada) até a fiscalização e análise dos movimentos operários (mentalidade taylorista-fordista). Ecoa uma tese temerária, que Kittler formula na esteira de Hugo Munsterberg (o primeiro crítico de cinema e inventor do termo “psicotécnica”): “Se a atenção subliminar é nada mais do que um truque cinematográfico, então os humanos podem ser fabricados e otimizados, em vez de serem ainda mais idolatrados idealisticamente. […] Na realidade técnica, o cinema científico-experimental, acima de tudo, muda as realidades da própria vida. Pessoas trabalhando na linha de montagem executam movimentos ensinados a elas por um filme (KITTLER, 2010, p. 176, tradução nossa).
Farocki vai demarcando, pela via argumentativa, a configuração de um olhar cada vez mais vigilante no encontro da câmera com a fábrica. Retomando a homologia delineada por Kittler, e para além dos processos de transferência tecnológica entre as duas ferramentas, seria a câmera uma espécie de arma de controle multitudinal, apontada para os trabalhadores? Uma arma, no caso, de funcionamento bastante particular, que, recalcando a violência do projétil que perfura e destrói o corpo, estabelece um processo silencioso de captura e controle imediato das imagens dos corpos, enquanto objetos simbolicamente assujeitados a um olhar central?
Aos 21’, vemos um trecho do filme Os assassinos (The killers, 1946), de Robert Siodmak, em que quatro bandidos roubam os salários no escritório da fábrica e saem disfarçados de operários. “A fábrica, como cenário do crime”, comenta a voz over. Quando a sequência prossegue, com os assaltantes perseguidos pela polícia, a imagem é congelada, e a montagem corta para outra perseguição, anacrônica, registrada por uma câmera de vigilância moderna em plano fixo. Duas figuras atravessam o quadro, de um lado para o outro, engendrando uma espécie de transferência narrativa em relação ao filme de Siodmak. Os corpos dos infratores, no novo contexto de vigilância, são identificados por retângulos vermelhos, enquanto o software de segurança controla vetorialmente seus movimentos mapeados.
De certa maneira, como já apontava Philip K. Dick no seu brilhante conto “Minority Report”, o sonho de toda inteligência superior, seja ela maquínica, divina ou soberana, foi sempre o de prever o futuro. Sabemos, hoje, de sistemas de vigilância que tentam alertar e predizer a iminência de um roubo antes mesmo que ele aconteça, câmeras de monitoramento que buscam de antemão o rosto do inimigo, o fenótipo, o traço distintivo do crime (trazendo inúmeros problemas de repressão de identidades por critérios de raça ou classe). Sob a visão das máquinas, que produzem imagens sem parar para regular o domínio da fábrica, os bandidos do filme de 1946 jamais conseguiriam fugir sem serem identificados. Quiçá, não haveria filme, isto é, não haveria cinema, pois o cerne da ação restaria “inoperado” de antemão.
Existiriam, nesse sentido, possibilidades de cinema insubmissas à ordenação visual das máquinas, cinemas que contrariam os movimentos de esquematização e padronização do mundo e das imagens do mundo, cinemas que atuam no combate da lógica do poder e da sua operação totalizante de controle e sincronização.
Com Farocki, é possível perceber um aspecto adicional, uma segunda ordem semiótica para o precedente bélico aberto por Kittler: a câmera, além de objeto técnico análogo à arma, é uma espécie de instrumento cartográfico que possibilita seja capturar e controlar uma representação (como na publicidade), seja, simultaneamente, engendrar um mapa de choques e disjunções, nesse fenômeno de variações a que chamamos movimento. Farocki, pausando e perscrutando a imagem, diz: onde estava posicionada a primeira câmera dos Lumière, hoje temos milhares de câmeras de vigilância. As câmeras, tentando absorver o espaço e o tempo da realidade como superfície uniforme, dão a ver, na contraparte ao fechamento do programa, múltiplas disjunções e múltiplos desequilíbrios dessa mesma realidade, por meio de imagens constituídas por fissuras, fendas, pontos cegos, feridas abertas, cicatrizes.
Há, portanto, um desequilíbrio constituinte dos processos de captação e construção da imagem. O cinema de Farocki se concentra no hackeamento ou na decodificação dos equipamentos de vigilância, com o objetivo de reverter sua aplicação hegemônica e fomentar uma guinada crítica do olhar. É justamente em função da instabilidade constituinte da imagem registrada que se torna possível, inclusive, sua apropriação para fins inversos (e diversos) aos da vigilância, com o objetivo de desvendar e até mesmo reverter o poder hegemônico por trás desses equipamentos de monitoramento e controle. Quer dizer, parece que quanto maior é o controle dos detalhes, ou a pretensão totalizante do sistema, maior é a sua vulnerabilidade. É uma hipótese.
2. A inteligência das máquinas
O paradigma hegemônico em computação hoje, crucial tanto para o domínio das imagens quanto para a automação do trabalho, é o das chamadas “redes neurais artificiais”. Projetadas para permitir o estudo de relações entre as disposições nervosas, a organização do ambiente e as performances “psicológicas” das quais o sistema é capaz, tais redes operam a partir do reconhecimento de padrões, por meio de indução estatística, e do aprendizado supervisionado do ambiente, por meio de “neurônios maquínicos” conhecidos popularmente, e de forma bastante imprecisa, como algoritmos. A chamada “inteligência”, no termo inteligência artificial, é o resultado das inferências estatísticas extraídas das correlações globais, em um conjunto de dados que são “incorporados” à máquina.
Quanto às tendências de algoritmos que giram em torno de conjuntos de dados limitados, cabe citar Matteo Pasquinelli, coordenador do grupo de pesquisa em Inteligência Artificial e Filosofia das Mídias da Universidade de Artes e Design de Karlshue. Segundo ele, “a rede neural é treinada para reconhecer padrões em dados anteriores, com a esperança de estender essa capacidade em dados futuros. Mas, como já ocorreu várias vezes, se os dados de treinamento mostram um viés racial, de gênero e de classe, as redes neurais refletirão, amplificarão e distorcerão esse viés. Sistemas de reconhecimento facial que foram treinados em bancos de dados de rostos de pessoas brancas falharam miseravelmente em reconhecer os negros como humanos.”
Retornando a Farocki, a historiadora da ciência da computação Orit Halpern insiste que “visão, para Farocki, é uma atividade além e fora do sujeito humano. É um produto emergindo do reino das máquinas e aparelhos de captura, aquele que condiciona e fabrica retroativamente a visão ‘humana’.” Ainda de acordo com ela, “parece que a máquina é capaz de fornecer um novo sistema de conexões para o cérebro humano.” Na mesma toada, Luciana Parisi já afirmava, em 2013, que “a computação algorítmica não é simplesmente uma ferramenta matemática abstrata, mas constitui um modo de pensamento por si só, em que sua operação se estende a formas de abstração que estão além da cognição e do controle humanos diretos.”
Como afirma Pasquinelli, nessa arquitetura distribuída e adaptativa de portas lógicas, “em vez de aplicar a lógica à informação de cima para baixo, a informação se transforma em lógica, isto é, uma representação do mundo se torna uma nova função, na mesma descrição desse mundo.” Pasquinelli avança na hipótese de que “novas máquinas enriquecem e desestabilizam as categorias matemáticas e lógicas que ajudaram a projetá-las”, pois, segundo ele, “a informação afeta a lógica”.
O paradigma que se coloca, aparentemente, no domínio da inteligência artificial, é “apenas” conhecer as possibilidades de organização de um contexto específico, e informar, para cada necessidade no sistema em questão, qual é a melhor decisão ou, em termos técnicos, qual é a solução ótima. De fato, para um problema de otimização em computação, cabe encontrar a melhor solução existente dentre todas as soluções viáveis. Esse “apenas”, portanto, longe de trazer tranquilidade, significa no fundo o máximo de “esquematização” da realidade, ao ponto do programa poder, nela, prever ou até mesmo induzir determinadas variações.
Ora, se a “inteligência” das máquinas é produto de inferências estatísticas, extraídas das correlações internas de um conjunto de dados pré-determinado, vale perguntar: “uma inteligência artificial em geral é capaz de escapar das categorias e procedimento lógicos nos quais se insere, e que torna sua operação possível?” E se a informação é como que produzida a partir de “um bom grau de aproximação estatística”, podemos nos perguntar sobre a qualidade dessa informação: o que ela aproxima? Quais informações deixa de fora? E como essas decisões se relacionam com o mundo concreto? Como elas o afetam? Qual é a relação de tal universo de dados, supostamente fechado, com o exterior?
É aí que espaço e tempo se confundem.
O sonho sinistro de “Minority Report”, citado acima, desemboca hoje nas técnicas de predição do marketing e na arquitetura do consumo. Em um de seus documentários de observação mais interessantes, intitulado Os criadores dos mundos das compras, Farocki mostra como a religião do capital realizou o sonho, se não de prever, ao menos de condicionar o futuro pela via computacional. O filme acompanha o processo de concepção e planejamento de um shopping center, do ponto de vista de seus arquitetos, empresários e lojistas. O registro do cineasta, contudo, enfatiza os dispositivos de medição e gerenciamento usados na arquitetura e na gestão dos espaços de consumo.
Em dado momento, vemos uma instrutora que treina gerentes de lojas e publicitárias, ensinando a manipular o olhar dos consumidores com técnicas de ponto focal. Esse método, que planifica a distribuição dos pontos no espaço, busca operacionalizar as reações do olhar e fazer com que a ordenação dos elementos da vitrine confira maior ou menor destaque a cada item vendido. Um estímulo pré-arranjado, uma ordem calculada, um código entranhado nas coisas, devem transmitir uma…mensagem? Não, uma ação.
O ponto chave, logo entendemos, é o acoplamento entre o planejamento do mundo e o condicionamento dos sujeitos, em particular da visão humana. A montagem intercala, em meio às cenas, um olho que está sendo “rastreado” por um aparelho de medição. Essa máquina, presente em consultórios oftalmológicos — e que remete às chamadas “técnicas do observador” estudadas por Jonathan Crary (2012) — detecta a direção da visão e avalia a reação habitual do olhar humano. No universo do consumo, ela permite quantificar o engajamento óptico do espectador com elementos publicitários e medir sua reação aos cenários de compras, propiciando a criação de ambientes de consumo mais eficientes na tarefa de garantir a captura dos sujeitos.
Farocki mostra o programa que contabiliza as pessoas atravessando cada entrada de um shopping, gerando informações que serão usadas para definir a melhor posição ou a mais lucrativa para as novas entradas, em novos shoppings. “As pessoas devem ser forçadas a entrar no shopping”, afirma um arquiteto. Fica claro, nesses exemplos, o vínculo entre a operacionalização dos mundos das compras, conforme as técnicas avançadas do marketing e do design, e a captura massiva dos padrões humanos, conforme as tecnologias de medição e controle.
Uma sequência notável, próxima ao final do documentário, é a do supermercado, em que uma equipe especializada busca distribuir as mercadorias nas prateleiras da maneira mais lucrativa possível. Para isso, eles analisam perfis de comportamento dos clientes no interior de lojas, fazendo uso de softwares que mostram os trajetos percorridos pelas pessoas, as seções mais acessadas, as mercadorias mais compradas e os percursos mais populares. Farocki entrevista o programador desse software: para ele, o importante é entender a lógica mental dos fregueses, antecipar seus desejos possíveis e materializá-los, magicamente, na prateleira mais próxima. Por trás desse sonho computacional, que busca prever e controlar os movimentos dos consumidores, temos algoritmos complexos de otimização e de inteligência artificial.
No cruzamento das palavras do programador com as reuniões de planejamento dos arquitetos, fica patente que a vida cotidiana foi submetida a um processo de “algoritmização”, em que tudo se tornou programável, restando pouco espaço para as coisas não medidas e não testadas de antemão. O exercício do poder, a subordinação dos sujeitos à estrutura material do mundo, ocorre de maneira abrangente e fria, sem uma delimitação estrita que corresponda, por exemplo, às instituições concentracionárias usuais. Convertidos em pontinhos no computador, os indivíduos se tornaram alvos de um sistema de representação e de operação digital. As mesmas imagens desse software de supermercado, cabe apontar, são retomadas por Farocki em Imagens da prisão, um ensaio dedicado a analisar o mecanismo de vigilância das prisões. Associadas ao programa utilizado pelos guardas para administrar a posição dos detentos no presídio, elas encontram seu verdadeiro significado: a contínua adequação da vida a modelos prévios de existência calculada.
3. Engrenagens contrariadas
Seria o caso de dizer, então, que as máquinas de hoje, para além de quantificar, entrecruzar e armazenar dados, seriam capazes de enredar, por imposição, os indivíduos em estruturas lógicas? Esta qualidade construtivista já não teria sido antecipada no século XIX pela criação da fotografia, do cinematógrafo e, mais tarde, do cinema?
Aqui vale lembrar Gilbert Simondon, no que diz respeito a uma certa fobia que a cultura ocidental nutriria em relação à técnica e, particularmente, uma fobia em relação ao androide. Ele classifica essa tecnofobia, esse preconceito contra a técnica e a tecnologia, como reflexo de uma sociedade oportunista que mantém relações entre senhores e escravos, mas que deixa transparente o medo de se tornar escrava das máquinas. Simondon, então, preconiza a necessidade uma educação que produza a entrada do mundo técnico no universo da cultura, como meio de regulação. O indivíduo humano deve ser o coordenador de uma sociedade dos objetos técnicos, esses mesmos objetos portadores de potências e devires próprios.
De modo que a questão aqui parece dizer respeito à possibilidade de se utilizar as máquinas para des-programar a máquina. O cinema como um dispositivo capaz de esvaziar diversas fontes de repressão, ou como linguagem capaz de propor um efeito de desprogramação, uma relação capaz de assumir a multiplicidade do real. O esquema que esgota a potência do registro na prática da vigilância, isto é: o registro como captura pela captação, a vigilância como seu produto, a informação. Em 1943, Maya Deren argumentava em favor da autonomia das imagens — que conteriam de fato e de direito seu próprio estatuto de realidade, uma realidade desdobrada, o cinema portanto como um acréscimo de realidade. Hoje, podemos dizer que se as máquinas “transformam a lógica”, é porque parece que tendência e desorientação convergem para formar sistemas hiper-programados, crivados porém por dobras, fendas, rachaduras… Aproveitar essas dobras e fendas implica em prejudicar o hiperrealismo algorítmico e a apofenia política.
Farocki reinventou o cinema para propor leituras críticas da técnica e das suas hipóstases, para realizar o diagnóstico insubmisso de uma cultura midiática difusa, composta por um sem fim de artefatos quiméricos ou kafkianos que se proliferam a perder de vista — ou, antes, a preencher por completo a vista, com seus produtos e subprodutos, seus resíduos, suas imagens, suas miríades de ramificações tecnológicas que nunca se interrompem. Mas existem outros artistas contemporâneos que, seguindo uma tradição farockiana do détournement crítico da imagem técnica, se esforçam por quebrar o código da hiperrealidade maquínica e para recolher seus fragmentos de maneira expressiva ou renovadora, de forma a restituir à imagem uma força de espanto ou de imprevisão. É o caso de Trevor Paglen, com sua série de retratos recompostos de personalidades mortas, por exemplo, intitulada Even the dead are not safe (uma citação benjaminiana). É o caso, também, de Hito Steyerl, por exemplo, no seu vídeo especialmente irônico e mordaz How Not to be Seen. A Fucking Didactic Educational .MOV File. A arte, em particular a arte da imagem cinematográfica, adquire a forma de uma máquina combativa de hackeamento, cujas engrenagens contrariadas instauram interrupções e fissuras na grande máquina do mundo, impedindo a sua velocidade absoluta ou o seu total fechamento.