Seis parágrafos sobre cinco curtas

Sobre cinco curtas visto em Tiradentes 2022 que continuarão comigo por um tempo.

Por Geo Abreu

A discussão sobre as vantagens e desvantagens de acompanhar um festival de cinema online tem sido recorrente e esse texto não traz novidades a respeito, apenas a constatação de que mergulhar numa sessão na sala de cinema é sempre uma experiência mais rica, de corpo e atenção envolvidas. Apesar disso, seguem abaixo os curtas que, mesmo vistos na tela de um computador, conseguiram permanecer por aqui ou talvez queiram ser mantidos por perto.

Ladeira não é rampa – Antônio Ribeiro e Sandro Garcia

Na quarta revisão e ainda descobrindo detalhes que mantém o filme em movimento ascendente. Belford Roxo tinha cinco pistas de skate públicas que foram desativadas e nenhuma sala de cinema. Desafiando os carros, Antonio desce a ladeira com seu skate. Usando calça e camisa social, enrola um pouco de camomila para fumar enquanto pensa sobre a próxima ação. O filme não dissimula, não apela para nenhum salto de fé ou suspensão da descrença: “Onde ele vai ser exibido?”, é a pergunta feita a certa altura. Ao respondê-la, a história executa uma manobra perfeita, um giro sobre si: amanhece descendo a ladeira e anoitece sendo exibida num cineclube, com crianças, cerveja e realizadoras presentes. Onde os equipamentos públicos são sucateados por pura ganância, a política do “faça você mesmo” floresce em coletivo e, nesse caso, atende pelo nome de Baixada Cine.

Manhã de Domingo – Bruno Ribeiro

Tem sido um prazer viver na mesma época que Bruno e seus curtas, acompanhar o amadurecimento de um realizador tão jovem e já tão afinado na regência: a história de Manhã de Domingo vibra a partir do piano de Gabriela, nos mantém atentas, nos atira contra a dor daquela perda, a angústia que antecede o primeiro grande recital, a repetição da história da criança prodígio que tem ouvido absoluto. A economia da forma existe para que o som preencha tudo e assim nos aproxime do que a protagonista não diz, ou diz através de sua música. O rigor da professora que no recital se atira sobre o instrumento, fazendo com que ele fale por vias incomuns é também o incômodo da filha que se mantém de pé mesmo perturbada por uma grande saudade. Um belo filme, de movimentos elegantes e fortes, seja ao piano, na expressão da atriz ou na quebra de expectativa após uma cena gigante.

Não Vim Ao Mundo Para Ser Pedra – Fabio Rodrigues Filho

Atravessando a relação estabelecida entre o personagem épico criado por Mário de Andrade e o ator Grande Otelo, responsável pela interpretação de Macunaíma no cinema, o filme de Rodrigues Filho se debruça sobre o livro mais do que sobre o filme, em busca de homenagear o ator e seu talento frente aos papéis que lhe eram confiados. Baseado em pesquisa e reativação de imagens de arquivo, o curta inventaria gestos – modulados entre altivez e preconceito – e discursos que fortalecem a relação entre ator e personagem, até quase descobrir-se que o personagem tenha sido feito de encomenda para aquele grande ator. Grande Otelo chega a pontuar ser preciso voltar aos arquivos de um certo jornal em busca de crítica escrita por Mário de Andrade e anterior a publicação do livro. Prova de que o autor tenha descoberto o ator e vislumbrado Macunaíma? Mais do que reavivar essa história através da pesquisa e da montagem, o filme também emoldura a trajetória de Grande Otelo, uma homenagem delicada e merecida. Ao fim desse parágrafo me sinto devedora da beleza que ilumina este filme.

Olho Além do Ouvido, Bruna Schelb Correa e Luis Bocchino

Assim como a discussão sobre festivais de cinema online, as características de filmes pandêmicos ou filmes de pandemia – aqueles que vem sendo realizados em condições de isolamento – tem sido outro ponto de interesse da crítica. Olho Além do Ouvido faz parte da Trilogia do Papelão, pesquisa desenvolvida por Bruna Schelb e Luis Bocchino em torno das condições de produção de filmes durante as restrições exigidas pela pandemia, em que o papelão é utilizado como elemento narrativo. No caso específico de Olho Além, as diretoras produzem uma fábula baseada no teatro de sombras para falar de um mundo onde se escolhe abordar a realidade de olhos fechados, até que uma garota que resolve questionar isso. Apesar de acompanhar as produções pandêmicas em vários aspectos como equipe reduzida, revezamento de funções e locação única, Olho Além do Ouvido encara as contingências, como  diria Roberto Santos, transformando a falta de condições em elemento de criação.  Reelaborando objetos do cotidiano e trabalhando o jogo de luz e sombras cenicamente, o filme discute temas como desinformação programada e a pesquisa de fontes confiáveis de crítica sobre o mundo de maneira lúdica.  A narração de Bruna dá o tom de oralidade, roda de contação de história, e embala as aventuras da menina curiosa que muda o seu mundo.

Tito, uma videopera pop do cerrado mineiro em chamas – Fernando Barcellos

Enquanto muitos filmes se baseiam no textão e na vontade de lacrar maiores que o desejo de filmar, Tito consegue articular seu discurso a partir de batalhas de dança e dublagem, transpondo para o cinema os realities shows e séries, populares justo pelas performances e figurinos, mas também pelas personagens que apresentam. Shakespeare é evocado e reconhecido por todo som e fúria, em meio à figuração de violência, para lembrar quão agressivo é o mundo para alguns corpos, representados em cada ato do filme: homossexualidade e negritude, heterossexualidade compulsória, mulheres masculinizadas e os homens afeminados, todes juntes disputando espaço para respirar e performar suas verdades, muitas vezes precisando guerrear entre si para se afirmar e se por em evidência. No fim, o número ao som de Marina Lima apazigua temporariamente as diferenças. Divertido e embalado por uma trilha de sucessos, Tito e sua videopera pop lacram demais, entregando entretenimento e audiovisual de qualidade.

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