Por Natália Reis
Tendo em mente que “panorama” é um termo que diz respeito à vista privilegiada de uma paisagem, ou ainda uma visada geral do entorno, a Mostra Panorama, que teve início neste domingo, dia 23, configura uma espécie de cartografia diversificada das manifestações cinematográficas emergentes em território nacional. Reitero a definição da proposta curatorial porque o que se apresenta para nós nessa primeira sessão são obras que se relacionam intimamente com a geografia dos locais onde foram desenvolvidas, e com os sentidos de existência de indivíduos nesses territórios.
A começar por Transviar (2021), de Maíra Tristão, um retrato, realizado em película, de Carla da Victoria, artesã e mulher transexual residente de Vitória, Espírito Santo. De maneira sensível, o filme de Maíra vai lidar com questões que perpassam as relações familiares recondicionadas pela transexualidade e o trabalho manual enquanto um dos fatores constituintes da identidade. No processo intrincado de fabricação de panelas de argila, Carla se pergunta sobre o lugar que ocupa numa tradição compartilhada já por quatro gerações de mulheres da família, ao passo que o rio e o mangue se abrem como cenário acolhedor para essas e outras indagações.
Em Dois bois (2021) de Perseu Azul, Joana retorna à casa da família após a morte da mãe para encontrar um lar hostil e um irmão atormentado pelo comportamento nocivo do pai. Ambientado no pantanal matogrossense, Dois Bois busca desenvolver uma ideia de insurreição feminina que se perde em meio a personagens planificados e situações derivativas que não vão além das oposições arquetípicas (feminino/masculino, autoridade/insubordinação) retratadas como mero jogo de força bruta. Ainda que possa contar com uma fotografia apurada e um entendimento extensivo das articulações da linguagem cinematográfica, o filme de Perseu não consegue ser feliz na direção dos atores e muito menos no desenvolvimento da alteridade dos seus protagonistas, que não conseguem ir além de uma trajetória limitada, feita de heróis e vilões.
Uma embarcação avança pelas águas esverdeadas de um rio parcialmente dominado pela vegetação costeira. Mais à frente, avistamos uma casa sustentada por colunas que se elevam sobre a maré. De lá desponta uma criança uniformizada segurando com cuidado os sapatos e o material escolar. Na cena seguinte, um grupo de alunos na faixa dos 8 anos de idade, já reunidos no interior do barco a motor, interagem animadamente. São alunos do 3º ano da Escola Sítio Porto Alegre, situada no pequeno município de Curralinho, na Ilha do Marajó. Uma escola no Marajó (2021) é o nome do belo documentário de Camila Kzan que acompanha a rotina diária de uma pequena escola de comunidade ribeirinha. Valendo-se de uma abordagem um tanto wisemaniana, Camila observa com primor as dinâmicas institucionais que contribuem para a estruturação desse espaço (como a preocupação da diretora com o combustível do barco fornecido pelo governo e as limitações de transporte), vez ou outra flagrando instantes encantadores de brincadeiras e interações das crianças entre elas, e entre a turma e seu professor.
Em Curupira e a máquina do destino (2021), de Janaina Wagner, a noção de progresso defendida inescrupulosamente pelo regime militar na construção da Rodovia Transamazônica faz parte de uma história de fantasmas e outros ecos de um tempo distante. Se no filme de Jorge Bodanzky e Orlando Senna Iracema é uma prostituta de 15 anos entregue à sorte, aqui ela retorna como uma aparição nas estradas que levam à cidade de Realidade (AM), numa busca constante pelos mistérios ancestrais que habitam a mata. Partindo de um ritmo desacelerado em que imagens pujantes se arrastam, Wagner vai nos contemplar com a promessa de redenção do passado e do futuro resguardada no encontro da entidade sobrenatural “a curupira” e a menina Iracema, que invoca sua presença como quem chama uma velha aliada.