Cinema, dinheiro e marmitas

Por Geo Abreu

As condições do país-brasil se (con)fundem com as condições do cinema brasileiro na atualidade.

Trilhando um trajeto particular pelos programas de curtas da Mostra de Cinema de Tiradentes – e assumindo sem pudor que escolho os filmes realmente curtos – emendei sem pensar muito a respeito: Ácaros, de Samuel Marota, Dinheiro, de Arthur B. Senra e Sávio Leite e Corre de Marmita, de Luiz Pretti e Phillipe Urvoy. 

Apesar da escolha ao acaso, executar os filmes nessa sequência fez muito sentido. Algo de continuidade em movimento ascendente, tanto pelo ritmo imposto pelos filmes quanto pelas temáticas conjugadas. Em Ácaros somos apresentados a uma imagem sem definição, “pequena”, “ruim”. O movimento da imagem é intenso, sugere trabalho, conhecimentos específicos, ação. Na saída daquele fosso acompanhamos um belo movimento de câmera que revela a grandeza de uma sala de cinema em ruínas, metáfora concreta dos dias que correm. Trabalho arqueológico de história do tempo presente executado em quatro minutos. As salas de cinema de rua minguam no mundo neoliberal, cujo tempo liso escorre em enxurrada, fazendo de tudo ruína.

E qual o papel do dinheiro nessa história? Uma convenção tão antiga e agora, mais do que nunca, espiritualizada por códigos digitais e transferências em tempo real? Em Dinheiro, somos apresentados ao histórico do papel que passou a representar um índice de troca entre entidades de naturezas diferentes. Várias versões do papel moeda brasileiro, seus brasões, generais, ditadores, cidades, índios – como na capa de um álbum do Sepultura – completamente deslocados como escala de valor em relação à sua representação numa nota de mil cruzeiros. Vibrando na tela, notas de dinheiro e notas fiscais servem de moldura para frases icônicas sobre o capital e suas contradições. Outros quatro minutos densos em que a montagem impõe o ritmo, e através dele se conecta ao filme que escolhi na sequência.

Corre de Marmita é ágil como a urgência que sugere. Seus onze minutos transcorrem como o pensamento acelerado que é necessário para se equilibrar na cidade: entre celular, deslocamentos e sobrevivência. O curta conta a história das pessoas envolvidas numa ocupação urbana no centro de Belo Horizonte que, em meio a luta pela permanência da ocupação, produzem ações de assistência à população em situação de rua distribuindo marmitas. No contexto da pandemia de Covid-19 o filme fala de direito à moradia, insegurança alimentar e outros arranjos de vida. Seguimos o grupo por andanças nas ruas e coleta de doações, enquanto a montagem do som atua sobre as diversas conversas que se cruzam, produzindo um mosaico de opiniões não-jornalísticas sobre o período, sem moralizar escolhas e temas. Além de uma visão sobre redes de solidariedade, Corre de Marmita fala sobre criação/manutenção de redes na luta por alternativas à comidificação do dia-a-dia. A dificuldade que é escolher cair fora e tentar viver sem ser esmagada pelo rolo compressor do capitalismo neoliberal e seus esquemas de produção de escassez é um tema que instiga. Observar o crescimento do número de pessoas em situação de rua e a precarização dos profissionais do audiovisual (e das artes em geral), ambos fenômenos que espelham o mesmo processo, e notar o aparecimento de filmes que sejam sintomas disso é usar o cinema como ferramenta dialógica, como instrumento da história do tempo presente, a catalogar os agoras. Esse conjunto de três filmes consegue sintetizar e pôr em movimento entendimentos sobre brasil-mundo e cinema-brasil.

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