Olhar de Cinema: Estilhaços (Natalia Garayalde)

Por Camila Vieira

As imagens iniciais de Estilhaços dão a impressão de que seria intocável a felicidade da família de classe média em que a diretora argentina Natalia Garayalde nasceu e cresceu. Aos 10 anos, ela ganhou de presente uma câmera Sony 8 mm do seu pai e passou a filmar seu cotidiano em Rio Tercero, uma cidadezinha de 40 mil habitantes, na província de Córdoba. Registradas nos anos 1990, as imagens domésticas mostram o frescor da vida em um bairro comum, com uma praça, uma escola, uma delegacia, um rio e uma fábrica. Ali residem as memórias dos passeios com o pai médico e a mãe professora de história, as brincadeiras com o irmão mais novo e a festa de ano novo de 1994. Seria o último ano em que a diretora conseguiria dormir sozinha, segundo suas próprias palavras no filme, e tal frase é seguida por um corte: as imagens de felicidade são interrompidas pelo impacto de uma tragédia.

Um plano sequência é filmado dentro de um carro que se desloca pelas ruas em meio a um bombardeio inesperado: pessoas gritam e correm desesperadas, projéteis explodem e estilhaços caem do céu. Enquanto ouvimos o ruído constante de bombas, uma mulher com um bebê nas mãos é resgatada. Após o caos e a desorientação, vem o contexto: em novembro de 1995, a fábrica de munição militar explodiu com 20 mil projéteis, causando a morte de moradores e a destruição de casas e estabelecimentos. O incidente alterou a rotina da comunidade, inclusive da família Garayalde. Autoridades e o próprio presidente Carlos Menem difundiam a versão oficial de que as explosões foram causadas por um acidente e um operário da fábrica é demitido e investigado. No entanto, descobre-se mais à frente que o evento foi proposital para ocultar o contrabando de armas para a Croácia, na Guerra dos Balcãs. O ataque tinha sido planejado para apagar os rastros da operação.

Diante da força e das consequências do incidente, Estilhaços movimenta-se do familiar para o coletivo, do íntimo para o público. Aquela inocência inicial das imagens felizes de classe média é diluída e o que se mostra como imagem são vestígios das casas destroçadas no dia seguinte à explosão, os projéteis ainda ativos que voltam a explodir, os relatos do pai sobre o receio de ser contaminado com fósforo branco. Mesmo que a menina Natalia se alegre por um instante com as aulas suspensas e com suas simulações como repórter a entrevistar moradores sobre a tragédia, a permanência do trauma na comunidade é o que a leva a parar de filmar. Até mesmo a escola começa a dar aulas sobre os riscos dos produtos químicos.

No último movimento do filme, as imagens de arquivo misturam-se às filmagens recentes feitas por Natalia em retorno a Rio Tercero. O que antes era apenas o medo coletivo de contaminação química materializa-se como doença no corpo da irmã: ela morre de câncer e, mais tarde, o pai da cineasta também será acometido pela mesma enfermidade. Mas a realizadora lembra que “as imagens sobrevivem aos corpos”. Se a vida familiar se estilhaçou diante dos fatos brutos que aconteceram, o desfecho busca restituir uma intimidade que sobreviveu como fragmento.

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