Levem os profetas ao limite – sobre o carpinteiro Steiner e o camponês Hias

Por Gabriel Papaléo

Coração de Cristal 1

“Construído de tal modo que quem o olhasse uma vez não pensava noutra coisa e assim o rei ordenou que o atirasse no mais fundo do mar, para que os homens não se esquecessem do universo.”

Jorge Luís Borges, O Zahir, em O Aleph.

 

O que é mais perigoso na altitude, o risco físico de vida ou os efeitos psicológicos que ela gera na percepção da realidade? Para os esportistas dos Alpes e os habitantes da Bavária ambos são costumes da rotina, quase motores e, para cineastas interessados pelo misterioso efeito alucinógeno da natureza como Werner Herzog, investigar o dever da excepcionalidade desses personagens cria contos dedicados às cerimônias que acontecem nos lugares. Em O Êxtase do Carpinteiro Steiner (1974) e Coração de Cristal (1976), o alemão filma dois protagonistas bem distintos – um esportista carpinteiro e um camponês – para ver a forma que ambos lidam com suas responsabilidades com o ambiente e principalmente saber o que fazer com o poder de ambos em profecia.

No filme de 1974, os Alpes são uma dimensão bruta de reflexo direto do clima, do tempo, na paciência típica dos esportes de inverno que só podem existir em uma época específica do ano. Os desafios físicos parecem maiores do que o humano é capaz e, ao dobrar essas certezas, o carpinteiro Steiner alcança alturas inimagináveis. No filme de 1976, a paisagem da Bavária contém ali gravada os contos épicos de relato oral, dos quais a encenação de Herzog se aproxima tanto de uma teatralidade física quanto dessa dimensão barroca, de grandes temas, das paisagens grandiosas que refletem as incertezas da vida daqueles homens e mulheres. É assim que o camponês Hias é apresentado: em meio a montanhas misteriosas, procurado pelas crianças que o percebem como uma criatura em conjuntura com os astros, como alguém que guarda criptografada a história do mundo.

Steiner 1

Então como exatamente a memória, esse estado de conforto emocional que pouco tem a ver com fatos, se reflete no cinema de Herzog, conhecido justamente pela crueza do presente, pelas elipses contadas quase sempre pela consciência alheia, pela atenção à ação do momento como provação dos seus personagens diante dos deuses, do cosmos, da terra? Há uma fina camada de realidade que distancia passado e presente nos contos bávaros do diretor, uma vez que o que já aconteceu permanece pairando de alguma forma o imaginário dos habitantes daquele lugar. Cabe ao demiurgo da vez, Hias, a não apenas canalizar as energias desse passado vivo que todos sentem e discutem sobre, como também o dever de assimilar que ele é o homem que atravessa essa ponte do tempo.

A terra ali retratada é vista especialmente sob o filtro das verdades absolutas que incidem sobre os habitantes em um literal transe. A única precisão que se percebe ali é a dos trabalhadores do vidro, concentrados e brutos nos gestos de criação de algo tão delicado. O senhor feudal do local é consumido por delírios de grandeza, em busca do tal vidro vermelho, e cabe aos pobres vassalos a subserviência dos acontecimentos – até que do transe são despertados, pelas palavras incendiárias de Hias, que permanecerá num pêndulo entre profeta e charlatão pelo crivo da opinião pública até os eventos levarem ao inevitável confronto com a autoridade que curva a sociedade que comanda sob seu desejo distorcido. O fogo das fornalhas aparece como uma miragem, desconhecida diante daqueles elementos mundanos, com a sedução da curiosidade apenas rivalizada pelo registro de Hias quase sempre à parte, acima do vilarejo, elucubrando diante das cataratas furiosas.

Coração de Cristal 4

A difusão quase abstrata entre as paisagens fantasiosas e os relatos comportamentais etnográficos que Herzog filma em Coração de Cristal parece investigar onde estão os vestígios emocionais da História daquele lugar, como ela se manifesta para além da catalogação, da preservação; como ela existe de forma intuitiva no movimento daquela população, como uma hipnose, como a qual o diretor submeteu seus atores durante a filmagem.

Por essa contradição entre um impulso altamente ético de organização social e o fascínio por personagens cuja desconexão com a realidade frequentemente é traduzida por delírios de grandeza que assumem uma tirania diante do bem comum que Herzog permanece dos grandes – senão o maior – alto turista europeu, usando a classificação de Thom Andersen e Los Angeles por Ela Mesma, a visitar a América do Sul com sua câmera. Os românticos Hias e Steiner (e mesmo Kaspar Hauser, com seu destino à experiência humana determinado pela fronteira social que nunca conseguiu ultrapassar) de alguma forma reconhecem a responsabilidade dos seus atos de grandeza, talvez porque estão ambos diante das suas terras de origem. Já o expedicionário Aguirre, o empreendedor Fitzcarraldo, o mercenário Cobra Verde, o vampiro Nosferatu, entre outros, se reconhecem no direito de fazer valer da influência, da suposta lei do mais forte, de entender que seus sonhos são tão espetaculares que a realidade deve se curvar diante deles. A negociação nunca é diplomática; é sempre de enfrentamento tortuoso, explosivo contra a terra alheia que deve ser colonizada pela mente brilhante dos falsos profetas.

Não por acaso são todos personagens vividos pelo ator Klaus Kinski, que viveu nesses filmes – e também em O Grande Silêncio, o grandioso banho de sangue de Sergio Corbucci – homens consumidos por uma crueldade voraz por simplesmente se aterem a seus objetivos pragmáticos de conquistas. A esses colonizadores fica apenas o delírio, a febre do lugar que não compreendem, os sonhos megalomaníacos movidos apenas por ego – conquistas do inútil, para ficar em autodefinições do próprio cineasta alemão. Sua visão fica consideravelmente diferente diante de seus conterrâneos que escolhem desafios que não sejam autoritários, que reconhecem a sociedade de alguma forma sob a extensão ética de seus atos – mesmo que esse ideal os leve ao exílio.

E em Coração de Cristal o profeta e o destruidor terminam na mesma cela, talvez porque mesmo diametralmente opostos na bússola moral, para Herzog existe neles uma aproximação através da excepcionalidade, no descumprimento das regras sociais e no isolamento que isso gera. Se o vilão enlouquece no seu luxuoso exílio particular com sua mente febril pelo zahir, Hias é afastado das pessoas por suas palavras intoxicantes, de confronto, de vanguarda. É da natureza, da floresta, que ele sente falta. Nunca conseguiu se afinar àquelas pessoas, o isolamento dos seus poderes de profecia o deixando sempre à margem, a viver com observadores e contemplações, destinado à solidão do presente porque é para o futuro que mira seus dizeres.

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A solidão também é uma constante no outro protagonista profeta de Herzog aqui retratado, o personagem-título de O Êxtase do Carpinteiro Steiner. O esquiador (e carpinteiro) percebe que o circo está em torno dos seus feitos, e o risco de vida ao qual ele é colocado parece importar apenas ao próprio Steiner (e à câmera de Herzog). São por essas dimensões psicológicas difusas e de rápidas decisões que Steiner atravessa ao longo desses dias de treino e competição, ponderando sobre a distância dos limites do seu corpo e seu poder de voar. A quem interessa as distâncias e os recordes? Quando perguntado por Herzog, o carpinteiro parece se importar menos com o recorde mundial que com o próprio recorde pessoal, talvez porque a importância de manter a mente sob controle e com medo suficiente para continuar saltando seja no limite a base para Steiner.

E como manter o controle se a ideia é justamente ir até o limite, no risco de vida, nas ideias, na transcendência? Steiner sobe e desce as colinas de neve o tempo todo numa jornada incessante por provação que soa pessoal a todo momento, quase como se para ele não houvesse oponentes, apenas a superação de si. E é nessa superação que existe o contato com o místico, no caso a natureza e a pulsão de vida que o perigo em dialogar com ela traz, nos voos viscerais que tentam trazer uma profecia de novas formas de imersão no ambiente – como se sintetizasse as mesmas visões de Hias, de uma forma tão abstrata quanto, mas infinitamente mais concisa, individual e esotérica. Se o camponês conjurava verdades ancestrais para tentar trazer paridade à realidade bávara de seu tempo, o carpinteiro faz sua busca utópica pela harmonia como uma ideia individual que com sorte contaminará aqueles que o observam a também experimentarem.

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Diz muito sobre essa distância abissal entre a necessidade do dever na profecia e o equilíbrio pessoal que o filme termine com um verso do protagonista dizendo o quanto sua liberdade seria alcançada quando estivesse sozinho, enquanto vemos ao fundo um dos magníficos planos de salto em câmera lenta. Por aqueles instantes no ar Steiner está consigo mesmo, preparado para satisfazer uma população vibrante que o assiste e quebrar recordes, mas sobretudo com a concentração e paz de quem está sozinho, voando aos céus, com boas esperanças de pouso.

O epílogo cerimonioso de Coração de Cristal ajuda a entender melhor o que significa essa curiosidade gerada pelas palavras e ações dos profetas, o comichão deixado na cabeça dos habitantes a procurar, em futuros, o ato de questionar – e quem sabe assim poder entrar em acordo com a natureza novamente, ser acompanhado pelos pássaros, se esbaldar nas possibilidades utópicas do mar e o que ele pode oferecer. Essa invenção também atravessa o carpinteiro Steiner, filmado por Herzog como um alquimista dos ventos, num voo suspenso que encerra o filme em uma das câmeras-lentas que buscam a eternidade do movimento, que concentram cada detalhe dos músculos do esquiador em queda livre à procura do solo.

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A aterrissagem não parece interessar tanto a Herzog na construção da mitologia de seu profeta até a última cena, talvez porque a terra seja dos habitantes que enxergam o presente, e aos alquimistas só resta o futuro, a possibilidade. Talvez essa seja a grande tragédia dos personagens românticos bávaros do diretor: não existe memória para quem está delirante, em contato com uma dimensão fantasma não-acessada no hoje, em busca da eternidade e da lembrança de quem estará no futuro, além do seu alcance como mágicos e além do nosso alcance como espectadores. Steiner quer apenas saltar, ficar na sua, como se o esporte fosse antes uma meditação, portanto solitária.

A chave dessa conexão que se apresenta quase mística para Herzog sempre vem na fricção com a natureza, e se há algo que as árvores e os rios e o vento e a terra guardam é a ancestralidade não-gravada, não-comunicada de forma humana, que apenas profetas em estado maníaco acessam – seja por acaso, seja por maldição, seja por muito, muito treinamento.

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