Editorial: cinema e memória

“O presente é o instante em que o futuro desmorona no passado”
– citação incerta de suposto verso de Browning por Susan Sontag,
em carta memorial a Jorge Luis Borges

Por João Lucas Pedrosa

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Não é um debate simples, o da memória na contemporaneidade. Recheadas de gerações póstumas – pós-moderna, pós-cinemática, pós-verdade, no caso latino americano pós-(quantos)golpe(s) -, as últimas quatro décadas parecem ter sido tomadas pelo espírito de fim de festa da razão, que festeja apenas para espantar (ou celebrar) a iminência do fim do mundo (em voz passiva, pulsão de morte). Talvez o fim da pandemia possa trazer o deslocamento perceptivo necessário para fazer enfim surgir o pós-apocalipse e, daí, ressurgir dos escombros o espírito da gênese (em voz ativa, pulsão de vida).

É pensando na gênese que vem a proposta do tema desta edição da Multiplot!. Na expressão da memória como ação. Henri Bergson via o corpo humano “como uma extremidade móvel que nosso passado estenderia a todo momento em nosso futuro”[1]. Enquanto tal, é inevitavelmente ligado ao passado, este que influencia cada movimento seu e expira na consumação de cada ação. Eis que há o cinema como ambos ação e registro da ação, o revirar da duração. Onde entra a arte que restitui a corrente da ação passada no presente, e que tumula, além dos mortos, suas cadências? Além dos corpos, seus espíritos de tempo? Além das matérias – ou sequer elas -, as suas virtualidades?

Nisso há muito: a tensão das percepções humanas de temporalidade (as obras de Alain Resnais e Chris Marker nos anos 1960); as contradições historiográficas feitas cinema (os filmes de Carlos Adriano, Congo de Arthur Omar, Center Stage de Stanley Kwan); o retorno ao passado como autópsia de um trauma histórico (Túmulo dos Vagalumes, de Isao Takahata); o filme histórico como objeto de fabulação (Bastardos Inglórios e Era Uma Vez… Em Hollywood, de Quentin Tarantino); a manipulação da História pela indústria hegemônica (O Nascimento de uma Nação, de D.W. Griffith, primeiro “longa histórico” de Hollywood e suas referências bibliográficas nas cartelas); a guerra e o holocausto tornadas gênero fílmico e como isso afeta o imaginário coletivo e a consequente relação das massas com o passado… o córrego é infinito, pois infinito é o cinema.

[1] BERGSON, Henri. Matéria e Memória. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 86.

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