“A atriz foi criada enfim”: Esther Kahn (2000) de Arnaud Desplechin

Por Natália Reis

 

“Porque o amador é tudo, e a coisa amada
é uma cortina
onde o vento do amador bate no alto da janela
aberta. O amador entra
por todas as janelas abertas. Ele bate, bate, bate.
O amador é um martelo que esmaga.
Que transforma a coisa amada.”

Herberto Helder

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Monstre sacré é uma dessas expressões francesas misteriosamente forjadas que exercem um tipo de fascínio curioso em quem as escuta pela primeira vez. Numa pesquisa rápida, o google nos oferece um relance do que pode vir a ser: “Uma figura pública marcante, excêntrica ou controversa.”, “alguém cujos talentos são muito superiores aos do homem comum.” ou ainda: “uma figura venerável ou popular que é considerada acima de críticas ou ataques apesar de excentricidade, controvérsia, etc.”, “um gigante naquilo que faz”.

Se existiu alguém cujas obra e vida poderiam ser lidas como o despertar de uma “monstruosidade sagrada” em todas as suas nuances, essa pessoa foi Sarah Bernhardt. Atriz de teatro francesa e ascendência judia, Bernhardt (nascida Marie Henriette Bernardt em 1844) conseguiu se manter até o fim dos seus dias sob o olhar atento de uma legião de fãs e admiradores. Entre a figura pública de destaque internacional e uma vida pessoal incandescente, a “Divina Sarah” da “voz dourada” transcendia as noções de atuação e de celebridade numa reinvenção constante da própria persona. Brilhou em papéis masculinos (Hamlet) e como personagens mais jovens (Joana d’Arc, aos 46 anos) ou trágicos (A dama das camélias), usava joias extravagantes, possuía uma relação entusiasmada com pistolas e mancebos, e dizem que dormia em um caixão apenas para se sentir mais próxima da morte iminente. Susan Sontag vai elencar o charme decadentista dos filmes de Sarah Bernhardt realizados no fim de sua carreira como manifestações legítimas do Camp e o crítico e poeta simbolista Arthur Symons dirá que a modernidade poderia ser tipificada por sua presença no palco.

Dentre as muitas citações atribuídas à atriz francesa, uma merece ser destacada aqui por servir bem como introdução a Esther Kahn, personagem inegavelmente moderna (e provavelmente de reverberações bernhardtianas)  do conto de Symons de mesmo nome publicado em 1905 e adaptado para o cinema por Arnaud Desplechin: “A arte dramática é essencialmente feminina. Pintar o rosto, esconder os verdadeiros sentimentos, tentar agradar e se esforçar para atrair a atenção – todos estes são defeitos pelos quais culpamos as mulheres e pelos quais se mostra grande indulgência.”. Longe de levantar qualquer tipo de bandeira feminista, Esther Kahn é uma parábola sobre a libertação de um desejo avassalador – por vezes tido como sintoma de um egoísmo feminino interior –  que age na transformação de um corpo desprovido de afetações em mulher e da mulher em atriz.

“ESTHER KAHN nasceu em uma dessas ruas escuras, mal cheirosas com estranhas esquinas que se encontram sobre as docas.”

Palavra por palavra, a introdução de Arthur Symons é repetida pelo narrador do filme de Desplechin ao passo em que nos é apresentada uma visão geral da infância e do universo primordial da protagonista. Esther é uma criança incomum, judia, filha de alfaiates pobres e residente de uma região obscura da Londres do século XIX. Tem medo de sair de casa porque a paisagem exterior é assustadoramente tomada por casas decrépitas, chaminés e janelas lacradas. Observa a família, mas não se sente parte dela. Enquanto as duas irmãs e o irmão se misturam naturalmente aos demais – pai (László Szabó), mãe (Frances Barber), avó (Hilary Sesta) –, durante o jantar Esther, exibindo um semblante quase estúpido, observa à distância os gestos que lhe parecem tão deslocados da realidade que merecem ser imitados. “Não repare nela”, diz a mãe em determinado momento; “ela não é uma criança humana, ela é um macaco; ela está se agarrando atrás de uma alma, como eles fazem. Parecem pequenos homens, mas sabem que não são homens, e tentam ser; é por isso que nos imitam”.

No desenvolvimento do longa, o diretor francês afirma ter se guiado unicamente por L’Enfant sauvage de François Truffaut, filme que narra a trajetória de uma criança encontrada na selva, incapaz de estabelecer uma forma de comunicação com a civilização. Diferente do garoto selvagem de Truffaut, Esther Kahn não foi destituída de contato humano, nem abandonada, mas não possui qualquer tipo de vínculo com os indivíduos que a cercam diariamente, muito menos com a vida que parece passar por ela sem deixar marcas. O único sentimento que a acompanha até a juventude –  quando passa a ser interpretada por Summer Phoenix (irmã de River e Joaquin) – é uma raiva imanente que se manifesta a cada rompante. Quando questionada pelas irmãs sobre suas expectativas para o futuro, não consegue pensar em nada além de: “ser vingada”. Phoenix encarna com vigor a passividade e letargia de Kahn de modo a tornar visivelmente incômoda a maneira como se esforça e se debate com as palavras (num tipo de performance truncada que se confunde entre os esforços da atriz e da personagem), tudo isso resvalando o furor e a confusão de quem não compreende seu lugar no mundo e se recusa a aceitar o que lhe é oferecido. Essa configuração só poderá ser revertida diante de um maravilhamento legítimo, que tomará de assalto todas as suas convicções: o teatro.

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A primeira vez que Esther Kahn demonstra excitação é justamente quando vai assistir a uma peça com seus irmãos (Claudia Solti, Berna Raif e Akbar Kurtha) e um pretendente pelo qual não possui nenhum apreço (Paul Regan): avança desmedidamente pela multidão para alcançar o guichê, os olhos sempre vidrados no palco e um discurso inflamado sobre o que acredita se tratar de uma boa atuação na volta para casa. A partir daí, presenciamos uma fagulha de desejo queimar na protagonista até então imobilizada por uma vida familiar – e proletária –   insatisfatória, e é essa a direção da arte indicada pelo filme: algo muito próximo de um labor, naturalmente capaz de provocar mudanças e suscitar um sentido de pertencimento até então inalcançável, inerte. Esther resolve se arriscar como atriz e comunica aos pais a decisão, sob protestos de que dessa forma não poderá ajudar financeiramente em casa. Retomando a distância que os envolve como o grupo de estranhos que sempre foram, um contrato é firmado e a jovem promete reembolsá-los pela mão de obra perdida nos trabalhos de alfaiataria e pelos gastos em sua criação até o momento. Os laços já escassos são desfeitos e, por fim, ao quitar sua dívida, Esther Kahn deixa o lar – que nunca de fato fora um lar – para se dedicar ao teatro.

É importante ressaltar que Desplechin preferiu de certa forma mascarar todos os momentos de interpretação de Esther sobre o palco. Fora as aulas que toma com o novo amigo, o ator – também judeu – Nathan Quellen (interpretado por Iam Holm), as demais cenas em que ela atua diante de uma plateia não possuem som além da narração que constata e descreve seu estado de espírito, os movimentos são acelerados, combinados com uma mecanicidade de Esther/Phoenix que só vêm a confirmar a própria crença da protagonista de que a atuação é um trabalho que deve ser executado como o prolongamento de um gesto resguardado nas estruturas ocultas do corpo.

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Apesar de ascender cada vez mais entre papéis importantes e o reconhecimento do público, em algum ponto do percurso as coisas passam a não bastar mais para Kahn. Novamente o vazio conhecido roça seu pescoço e sussurra “e agora?”.  A resposta ao aborrecimento vem de seu mentor, Nathan, que num tom paternal explica que o que lhe falta é amor. Ou sofrer por amor. “Você nunca sentiu algo pior do que um corte no dedo”, diz. Como há de compreender a vastidão dos sentimentos que mimetiza? A jovem atriz decide então eleger um pretendente à altura de uma investida que deve antes de tudo agir como energia renovadora. Nesse momento somos apresentados a Philip Haygarth (Fabrice Desplechin), crítico de teatro e autor de algumas peças. Esther o espia por trás da cortina e passa a dedicar-lhe um amor sorrateiro.

Hedda Gabler, personagem da peça de 1890 de Ibsen, é uma mulher intrigante que se vê de repente presa num casamento tedioso e tentada por uma antiga paixão. O fim trágico que a aguarda é resultado da busca desesperada pelo calor que já a consumiu uma vez, mas que agora só é capaz de anunciar sua presença abrandada nas intrigas e jogos cruéis que promove para se distrair. Há quem consiga dizer, inescrupulosamente, que teria sido “traída pelo próprio desejo”, entre outros clichês que não alcançam em nada a magnitude de seus atos finais, mas é possível ainda compreendê-la dentro de um longo histórico de mulheres que preferem a morte à não-existência. Hedda Gabler se avizinhará de Esther Kahn em dois momentos: primeiro, quando o casal Haygarth-Kahn passa por uma fase cálida –  Ele se faz seu tutor, fala das artes e de coisas maiores da vida; ela, um tipo de aprendiz fiel, corta o cabelo como sugerido pelo parceiro e lhe presenteia com um livro contendo a peça de Ibsen (uma cópia em norueguês, incompreensível para ambos infelizmente). A segunda vez que Gabler dá as caras é na forma da oferta para o papel principal que Esther receberá.

Noite de estreia, a jovem atriz descobre há pouco que o homem amado está vivendo um romance com uma italiana vulgar (e incomunicável, pois não fala outra língua além de um “dialeto provinciano”) de nome Sylvia (Emmanuelle Devos). Da coxia, observa os consortes chegarem para o espetáculo enquanto é arrebatada por um sentimento desconhecido até aquele instante. O que se sucede nos próximos minutos é a colisão das forças que nos foram negadas em todo o filme por um ritmo comedido, que se destinou a preservar a apatia da protagonista e o modo oblíquo com que observava o mundo. Mas aqui as coisas se agitam e se tornam violentamente vivas: Esther se recusa a entrar em cena, sofre com feridas de automutilação enquanto os demais atores e trabalhadores do teatro orbitam a atriz como um astro irresistível e destruidor. Cacos de vidro mastigados, cortes na língua, sangue, gritos e mais choro, ninguém consegue convencê-la a desempenhar seu papel. A volatilidade chega à superfície enfim, e dá lugar a uma nova estrela nascida do caos. Seu corpo é empurrado para o palco e, na luminosidade amarelada das lâmpadas de gás, faz aquilo que lhe cabe tão bem: atua brilhantemente. No intervalo, um bilhete elogioso do traidor: “Me devolva mil vezes o que te dei” e um pedido para encontrá-la. Mas já estava feito:

“A nota tinha sido tocada, ela tinha respondido a ela, como respondia a cada sugestão, sem falhas; ela sabia que poderia repetir a nota, sempre que quisesse, agora que a havia encontrado… Ela poderia retomar seu amante, ou nunca mais vê-lo, isso não faria diferença.”

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