Mostra de Tiradentes: Subterrânea (Pedro Urano)

subterraneaPor Chico Torres

 

Sou a pedra que caiu do céu
E virou peça de museu
Que ardeu em grande fogaréu
Mas que sobreviveu

(Trecho de Bendegó, canção de Renato Frazão e Cláudia Castelo Branco)

A pedra falava
Ao longo das eras
Sempre baixinho
Ninguém suspeitava
Que no meio da pedra
Tinha um caminho

(Trecho de Pedra de iniciação, canção de Thiago Amud)

 

Subterrânea surge como alegoria para denunciar diversos acontecimentos ocorridos no estado do Rio de Janeiro que fazem parte tanto de sua fundação quanto de seu aspecto sociopolítico atual. Todos esses acontecimentos, expostos através de uma série de metáforas, falam, em síntese, sobre o desequilíbrio entre homem e natureza, ou sobre o desequilíbrio do homem consigo mesmo. A obra parte da premissa de uma natureza mineral que, ao ser explorada, enterrada ou destruída por um ideal de progresso, gera a própria ruína humana.

Já de imediato, percebemos um cinema de gênero. Somos levados pelo estudante Leo (Negro Leo) e por sua tia e professora de geologia Stein (Susana Stein) em uma aventura exploratória que procura desvendar os símbolos gravados em pedras encontradas aos arredores da região do extinto Morro do Castelo. Em paralelo a esse aspecto fabulesco, Subterrânea também se desenvolve como documentário, o que reforça seu tom de ironia e denúncia. Todas as buscas de Leo e Stein caem nas mesmas conclusões: o homem é o destruidor de si mesmo porque não consegue se enxergar como parte da própria natureza. Ao destruir, implodir, demolir, o ser humano alimenta o motor que acelera a sua própria destruição, já que esse passado latente, mais cedo ou mais tarde, vem cobrar a dívida.

O filme passeia por diversos temas que exploram a ideia de que essa natureza subterrânea e mineral pode nos indicar um caminho (ou pelo menos entender que o caminho traçado até agora está errado), à medida em que acompanhamos o seu processo de destruição. Vemos como o meteorito de Bendegó “sobreviveu” ao incêndio do Museu Nacional: a sua resistência e presença nos servem como marco simbólico de um apagamento não apenas material, mas de todo um registro cultural e científico que viraram pó. Vemos, ao acompanhar parte do processo da demolição do Morro do Castelo e a lenda do seu tesouro, a história atual do Rio de Janeiro, pela relação entre religião e poder, seja através dos Jesuítas no passado colonial, ou do poder dos neopentecostais no presente capitalista. O fantasma de Lima Barreto parece ser o guia para o verdadeiro caminho por entre esse passado apagado, mas que ainda resiste sob os escombros da história. Esse aspecto fantasmagórico e sombrio se reforça, ainda que de maneira menos significativa em relação ao tema que norteia o filme, com a presença da estudante Clara (Clara Choveaux), personagem que simboliza os casos de suicídio acontecidos na UERJ. Uma denúncia sobre o processo de desmonte das pesquisas nas universidades federais e suas consequências aterradoras.

O arrasamento de tudo como processo de desenvolvimento. Maceió, capital de Alagoas, serve como o exemplo mais atual dessa constatação: a Brasken, empresa de exploração do sal-gema, foi responsável pela destruição de bairros inteiros a partir ano de 2019, desabrigando centenas de famílias de suas casas devido à exploração inadvertida do minério. Nascem cidades fantasmas de ações como essas. É assim que a natureza cobra, revelando que o avanço é também o prenúncio do fim. E, como é citado no início do filme por Leo, uma referência a Eduardo Viveros de Castro, quem paga primeiro com esse aniquilamento são os povos indígenas, os negros, os empobrecidos, todos eles são especialistas em fim de mundo, já que para eles o mundo acaba diversas vezes e sistematicamente. Mas a ruína está para todos que fazem parte desse jogo civilizatório em nome do progresso. E o que resta fazer? Ressuscitar os mortos, recontar a história e entender o caminho que está inscrito nas pedras.

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