Por Chico Torres
Kevin, de Joana Oliveira, me remete ao cinema de Hong Sang-Soo, sobretudo ao The woman who ran, seu filme mais recente. A premissa é semelhante: uma mulher que, longe de casa e do ambiente familiar, dialoga com algumas amigas sobre diversos assuntos cotidianos. Por trás dessa banalidade aparente, o filme expõe algumas questões acerca de dilemas femininos há muito conhecidos, sem nunca perder de vista a subjetividade das personagens, o que imprime originalidade e verdade à obra.
Se The woman who ran é uma ficção com ares documentais, Kevin é um documentário constituído por diversos aspectos ficcionais, expondo com muita potência esse limite tênue entre gêneros. Conhecendo alguns detalhes da produção do filme, se descobre, por exemplo, que ele foi feito em duas etapas, com duas viagens à Uganda. O filme passa a sensação de que Joana fez uma viagem relativamente curta e na ausência de seu esposo, Gustavo Fioravante, que aparece apenas no começo do filme, ainda no Brasil. Mas Gustavo, além de personagem, fez também o desenho de som do longa, estando em África nas duas ocasiões. Esse é um exemplo entre tantos, mas serve para mostrar o quanto Kevin é construído dentro de um controle e rigidez que se afasta, em alguma medida, da imprevisibilidade do documentário, daquela tentativa de capturar o real em detrimento do bom acabamento e do resultado esperado. Pelo contrário, o filme não possui quase nenhuma ranhura ou entrave em sua construção, mas nem por isso perde a naturalidade e a sinceridade que se dão através do encontro entre as duas personagens.
O longa carrega o nome de Kevin, mas sua protagonista é Joana. Somos apresentados primeiro aos seus dilemas e é sua jornada pessoal que sustenta todo o filme, além de olharmos Kevin a partir do ponto de vista da diretora/personagem. Entretanto, como no filme de Hong Sang-Soo, as questões emocionais de Joana não só vão sendo reveladas de maneira sutil através de seu convívio com Kevin, mas são atravessadas por sua presença, sua vida, suas falas. E aquilo que Kevin expõe à sua amiga, inevitavelmente, acaba por se relacionar com questões sobre interculturalidade e interracialidade. Desse modo, Kevin cresce em protagonismo à medida que vamos conhecendo sua realidade de mulher negra, mãe solo e africana com vivência na Alemanha.
Essas duas instâncias, a subjetiva e a política, nunca se conflitam porque não se separam, funcionando sempre através dos diálogos e do cotidiano dividido entre as personagens. Mais do que uma história de uma amizade, Kevin é sobre a história de duas mulheres que vivem realidades completamente díspares, mas que através do afeto se reconhecem, se somam e se acolhem dentro de seus dilemas, como na cena em que ambas caminham sobre os trilhos do trem e percebem que de mãos dadas conseguem um melhor equilíbrio para seguir o caminho.