Um carro roubado, um filme perdido: Keep It for Yourself e a Nova York de Claire Denis

Por Natália Reis

 “City of accidents, your true map
Is the tangling of all our lifelines”

(Adrienne Rich)

 

Um filme dado como desaparecido (ou ainda terminantemente perdido) quando reencontrado resguarda uma experiência comparável à abertura de uma cápsula do tempo. Da ânsia, irrompe o maravilhamento diante da possibilidade de colocar os olhos em um objeto distante e extraordinário –  quem são aqueles que sonham em ver materializados na tela Naniwa Onna (Mizoguchi, 1940), Surucucu Catiripapo (Neville d’Almeida, 1973) ou ainda a versão integral de Greed (Stroheim, 1924)? Para os que possuem uma relação simbiótica com o cinema, a imagem resgatada emana uma luminosidade quase sacra – e nada mais justo que compartilhá-la com o resto do mundo num gesto de comunhão.

Em 2019, o Le Cinéma Club, plataforma de streaming gratuita que, desde 2015, faz a exibição de um curta-metragem diferente por semana (incluindo restaurações, obras raras ou pouco conhecidas), conseguiu localizar e exibir online Keep It for Yourself (1991), único filme realizado por Claire Denis nos Estados Unidos (pelo menos até o momento) e por anos tido como irrecuperável. O média-metragem faz parte de uma peça publicitária, no mínimo curiosa, da empresa automobilística Nissan: diretores de diferentes nacionalidades deveriam desenvolver projetos curtos, nos quais de alguma forma e em alguma ocasião o Figaro – novo modelo da marca à época – fosse inserido no enredo. Dos três segmentos de Figaro Story (Figaro sutōrī, 1991)[1], apenas Keep It for Yourself  pôde ser recuperado. E a cópia japonesa em VHS escavada do ebay (com direito a legendas embutidas em japonês e desfoque censurando os pelos pubianos) acabou se tornando mais uma camada de verniz no estatuto lo-fi da obra.

O filme de Denis parte de duas narrativas equidistantes que colidem em certo ponto. Primeiramente temos Sophie, uma jovem francesa de Dijon – “como a mostarda” –, interpretada por Sophie Simon, que parte para Nova York, após receber uma carta de seu interesse romântico. Ao chegar à cidade, a jovem encontra um bilhete do namorado notificando sua ausência por alguns dias e um apartamento vazio, exceto por alguns eletrodomésticos, um colchão no chão e caixas de pizza igualmente vazias. Na outra ponta da trama, vemos um imigrante latino (E.J. Rodriguez) que, ao visitar o amigo, funcionário em um estacionamento, é levado como motorista/refém por um ladrão de carros (Vincent Gallo). Numa mudança inesperada dos eventos, ele recebe de presente o carro roubado – o simpático Figaro – do assaltante e é confundido com o criminoso pela polícia local. O rapaz busca refúgio em um prédio, no qual a única resposta ao seu pedido de socorro vem do apartamento de Sophie, que abre a porta acreditando ser o companheiro desertor. Passado o pavor inicial da fuga (por parte dele) e da invasão (por parte dela), os dois estrangeiros se aproximam, se aquecem, se amam, e partem juntos ao amanhecer. Deixando para trás um carro japonês rebocado e um ex-namorado que tem medo de se comprometer.

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Olivia Laing é uma escritora e pesquisadora britânica que frequentemente intercala experiências pessoais e dados biográficos de figuras influentes do mundo da arte em seus trabalhos. Em A cidade solitária: Aventuras na arte de estar sozinho (2017), a autora analisa a relação de artistas como Edward Hopper, Andy Warhol, Henry Darger e David Wojnarowicz com a cidade e o isolamento, ao mesmo tempo em que aborda seu trauma enquanto estrangeira vinda para Nova York e, assim como a personagem de Simon, abandonada justamente por quem motivou a partida. Entre as infinitas horas passadas no twitter no interior do apartamento e alguns passeios frios pelas avenidas e pontos turísticos, Laing descobre um tipo de solidão compartilhada quase reconfortante, apoiada na retribuição que o espaço urbano pode oferecer: “Na ausência de amor, eu me vi agarrando irremediavelmente a própria cidade”.

Keep It for Yourself é uma obra sobre solidão e sobre se agarrar à cidade – ou ao menos se abrir para que ela se agarre a você. Desde sua chegada, Sophie se mantém confinada no loft espaçoso no centro de Manhattan. Toma banhos gelados, ouve o rádio, fuma cigarros, passa o dia deitada num colchão ora olhando para as paredes brancas ora observando a chuva e o movimento na rua pela janela. A câmera de Agnès Godard, no primeiro filme de sua trajetória ao lado de Claire Denis, põe-se cúmplice desse tédio recriando uma espécie de mulher ackermaniana, refém das próprias repetições. Se os contrastes monocromáticos tornaram-se rarefeitos pelo tempo e pela conservação da fita, esses instantes são construídos por meio de outras oposições: a garota comprimida num ambiente dilatado e o silêncio interior sendo constantemente atacado pelos ruídos exteriores (buzinas, carros, sirenes). É como Nova York comunica a sua presença ali.

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Em uma das poucas cenas de Sophie fora do apartamento, enquanto come panquecas em um café, uma estranha se aproxima para falar de croissants e chapéus. A mulher, que até então lia um jornal com letras garrafais na primeira página anunciando a guerra do Golfo, é interpretada por Sara Driver, diretora e esposa de Jim Jarmusch, com quem Claire Denis já havia trabalhado como assistente de direção em Down by Law (1986). Assim como Driver, outras personalidades do underground nova-iorquino participam do média, o que – diferente dos travellings e panorâmicas (um movimento de câmera metropolitano por excelência, disse certa vez Jean-Louis Comolli) que acompanham uma conversa desatada ou contornam os arranha-céus – revela uma outra composição da cidade para fora do espaço fílmico: a das produções subterrâneas, de Jonas Mekas e o Anthology Film Archives, dos filmes de baixo orçamento e equipes formadas por amigos e dos clubes noturnos de música e cinema. John Lurie, ator e músico expoente do No Wave, compõe a trilha; Jim Stark, produtor de Coffee and Cigarettes (1986-1989), Mystery Train (1989), Down by Law e outros filmes de Jarmusch, atua como o vizinho calado e locador do imóvel onde a jovem francesa espera; e E.J. Rodriguez, na época percussionista dos Lounge Lizards ao lado de Arto Lindsay, Marc Ribot e os irmãos Lurie, é o latino imigrado e arrastado contra a vontade para um ato criminoso por Vincent Gallo em sua primeira de muitas colaborações com Claire Denis.

É difícil compreender Keep It for Yourself fora desse meio. Mais difícil ainda não evocar, nem de relance, a imagem de Eva, a prima húngara de Willie em Stranger Than Paradise (1984) chegando à metrópole com uma mala, uma sacola de papel e o rádio tocando “I Put a Spell on You” na versão de Screamin’ Jay Hawkins. Eva e Sophie não se esforçam para se integrar à cultura local, mas visivelmente fazem parte da paisagem cultural nova-iorquina. No filme de Denis, são poucos os que não têm sotaque. A atendente do café, a vendedora da loja de chapéus onde Sara Driver leva a recém-conhecida “french princess” (e fecha magicamente um ciclo de cameos de Driver iniciado em Stranger Than Paradise figurando como a “hat girl”), um homem e criança asiáticos que aparecem uma ou duas vezes abrindo o comércio ao lado do prédio do namorado displicente e até o latino confundido com um ladrão de carros que se vê obrigado a forçar a entrada no exílio da francesa solitária, são rostos pincelados pela cidade que trazem, ainda que de forma branda, temas caros à diretora: o trabalho, o estrangeiro, o invasor.

O personagem de E.J. Rodriguez não tem nome, mistura espanhol e inglês com cadência e leva comida chinesa para o amigo que está em horário de trabalho. Na guarita, entre um gole e outro na sopa quente para espantar o frio que vem de fora, reclama que não está muito bem e, quando indagado pelo colega, nomeia seu mal: “nostalgia”. Svetlana Boym dizia que a nostalgia é uma doença moderna sem cura, mas que, “diferente da melancolia, que se limita aos planos da consciência individual, a nostalgia é (também) sobre a relação entre a memória pessoal e coletiva”. A palavra, solta assim no diálogo, sem maiores explicações, é um fio lançado entre o homem que está prestes a se ver envolvido em uma situação na qual se torna fugitivo e a mulher prisioneira da própria espera. O encontro que se dará entre os dois é o prenúncio da partilha dessa nostalgia e de uma solidão experimentada pelos que chegam e pelos que partem da cidade. Sophie abre a porta sem saber se tratar de um estranho, os dois lutam, mas o rapaz a tranquiliza, explicando, mesmo sem ser compreendido, que só precisa de um lugar para se esconder. As distâncias entre as duas línguas aos poucos se encurtam, os corpos frios buscam um ao outro e a seguir vislumbramos uma sequência tão delicada quanto carnal. Nos beijos, toques e carícias Denis esconde, como um pequeno segredo, um tratado para a sobrevivência na cidade grande: estamos todos perdidamente sozinhos, mas às vezes é preciso abrir, ou ainda romper, algumas portas, e nos aquecermos num abraço desconhecido.

[1] Realizados por Claire Denis, pelo japonês Kaizô Hayashi e o argentino Alessandro Agresti.

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