Quatro filmes de mistério – CineBH – sessão curtas 3

Por Gabriel Papaléo

on the rocks

Coisas Úteis e Agradáveis adapta o texto de Voltaire para um contexto de isolamento, tal qual o República de Grace Passô, e retrata a estrada perdida do protagonista indiano pela sugestão minimalista – de alguns objetos de cena importantes para a dramaturgia ao opressivo cenário caseiro que investiga sombras e prisões. Depois de Vaga Carne, novamente o diretor Ricardo Alves Jr. aproxima a tradição teatral do monólogo para estabelecer uma fina linha dramatúrgica da forma que a luz ecoa a voz do ator em close, de como o gestual do ator e diretor Germano Melo (aqui também responsável por adaptar o texto) incorpora o dilema em primeira pessoa do indiano violentado com o distanciamento brechtiano do relato político. O arsenal de recursos de Alves Jr. na hora de retratar esse universo não é vasto como no filme com Grace Passô, nem é dotado da afronta formal proposta pela artista – o caminho aqui é mais seguro, até mesmo mais desequilibrado. A cenografia acaba um tanto reiterativa volta e meia ao eleger os mesmos objetos do texto, soando ilustrações literais demais da adaptação, mas perto do final Melo e Alves Jr. encontram num retrato fantasmagórico uma âncora misteriosa interessante ao personagem. É um conto que oscila na modulação dramática, por vezes toma caminhos mais óbvios, mas demonstra seu revide político quando precisa e sabe orquestrar uma imagem de impacto com pouco – o que parece se tornar a especialidade de Alves Jr.

on the rocks

Corre quem pode, dança quem aguenta fez parte da retrospectiva do cineasta Welket Bungué durante essa edição, e torna visual uma crônica sobre as escolhas da vida do artista diante da dança, da performance. O silêncio incomum do Rio de Janeiro, da vista de Santa Teresa, contrasta diretamente com a violência descrita no relato de Bungué, nas formas de opressão veladas ou mais diretas, nos agouros enfrentados pelo performer diante das adversidades sociais tão palpáveis e explícitas numa cidade cosmopolita como o Rio. A forma estética, modesta à princípio, investe nos espaços e em localiza-los como instrumentos de eco da voz do relato; é quando o rosto e corpo de Bungué se tornam mais constantes nos quadros que a dimensão desses espaços ganha um mistério especial, quase como uma confissão íntima diante de locais tão públicos – vazios e silenciosos como quase nunca acontece no Rio -, e cuja luz incide estilizada mesmo em externas naturais, as sombras e o claro-escuro surgindo inesperados. As fusões transformam o dançarino em uma aparição, alguém que flutua pela cidade, e daí temos o lastro visual do que significa esse aguentar do título.

on the rocks

Do pó ao pó, curta de Beatriz Saldanha, parte da banalidade do cotidiano para transformar a rotina numa prisão, através da repetição das ações e de um eventual e crescente surrealismo nas imagens que organiza. O impacto dessas imagens oscila bastante, e parece mais à vontade nas investidas gráficas com sangue, texturas e viscosidades, e menos interessante quando busca articular pulsões de livre associação (a máscara, a punheta). A montagem em volta da bagunça dos dias da semana também soa bem básica, como um símbolo de primeira mão do que seria o tempo esgarçado em quarentena, e o curta acaba como mais uma curiosidade diante do isolamento que como o pesadelo doente que parece almejar.

on the rocks

Misterioso como o filme de Bungué, mas através de outros dispositivos formais, de texturas, é o curta Extratos, uma viagem de Sinai Sganzerla ao passado de seus pais, Helena Ignez e Rogério Sganzerla. A voz narradora atual de Helena, das vozes mais poderosas do cinema brasileiros, conta também com a intimidade e a magia do curta de Bungué, mas sob a estética documental das imagens em super 8 e 16mm registradas pelo casal no exílio, de 1970 a 1972. Helena nos conta da sensação de pertencimento roubada pela ditadura brasileira, da errância pelo mundo a procura de verões, de paisagens familiares, das incertezas de dois jovens acossados que voltam escondidos para terem sua filha no Brasil que lhes escapou. Ver duas figuras tão icônicas quanto Helena e Rogério trajando suas roupas jovens, em movimentos cotidianos e de acolhimento, parece sobretudo um exercício de humanização, mas de alguma forma aumenta a mística a sua volta. Entende-se as cores nômades, os sorrisos ocasionais e a melancolia do olhar do plano aqui escolhido, um momento de impacto no arremate do filme. Uma breve história de esperança de quem aproveitou como pode a experiência ao redor do mundo pra investigar formas de enganar a morte, para um presente incerto mas sobretudo à procura de utopias.

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