PretEspaço: as cidades não imaginadas

Por Kênia Freitas

“Aspiramos aos cosmos pela simples possibilidade de sonhar. Aspiramos ao espaço sideral para além do etéreo e longínquo. Mas também ao espaço em sua forma mais literal. Espaço.”

(Manifesto pelo Espaço, NEGRUM3, Diego Paulino, 2018)

“O que não tem espaço está em todo lugar”

(Filme Jota Mombaça, 2020)

Esse texto nasce do abismo entre essas duas ideias:

_ Espaço sideral & literal + (não) Espaço que está (sempre-já) em-todo-lugar.

E nasce do movimento brusco de cortar e juntar filmes díspares, a partir das cidades que eles percorrem, tomam para si e, simultaneamente, recusam a imaginar – em um gesto de reciprocidade.

Criação do PretoEspaço em NEGRUM3 (Diego Paulino, 2018)
Criação do PretoEspaço em NEGRUM3 (Diego Paulino, 2018)

E se faz no gesto ainda mais bruto de reivindicá-los em e para um PretEspaço:

_ entre a explosão cosmológica de corpos pretos iluminados em um telhado de São Paulo de Paulino e as imagens tremidas da janela do avião do relato de viagem/desabafo de Mombaça.

_ entre a luta “pela individualidade de nossos corpos e a pluralidade da nossa negritude ao exercer as múltiplas formas de ser” (Paulino) e as “144 páginas da Wikipedia de escritorxs que escolherem a saída. (…) aquelas listadas e aquelas que o Google não nomeou” (Mombaça).

_ entre reinventar-se e compor “um poema sobre morte e desaparição”, como complementos da mesma coreografia de impossibilidades.

Não é Lisboa. Não é Berlim. Não é Natal. Não é Roterdã. Não é Paris.

A condensação do PretEspaço em “O que não tem espaço está em todo lugar” (Jota Mombaça, 2020)
A condensação do PretEspaço em “O que não tem espaço está em todo lugar” (Jota Mombaça, 2020)

Delírio das imagens na “dança do fim dos tempos”. O que pode ser ouvido invertendo a flecha do dizer no tempo. E é  o que se desenha do movimento entre as mãos, e da sua penetração/fricção no cu.

PretEspaço que também não é Fortaleza, mas sim é“lá onde as luzes artificiais ainda não apagaram as estrelas e tu conhece as ruas fora dos mapas de papel” em Cartuchos de Super Nintendo em Anéis de Saturno (Leon Reis, 2018). Antes, a cidade zoneada em níveis de acessos raciais e sociais é para o jovem preto na madrugada o lugar do terror e do perigo – os lanternas brancas estão ali em cada esquina à espreita e os amigos brancos de carro já (sempre?) estão longe demais.

A volta para casa no PretEspaço_1
A volta para casa no PretEspaço: “O buraco negro da tua pele rodopia todo cosmos em ti”.

A cidade só é, então, enquanto encruzilhada. Bifurcações e duplos da volta para a casa e/volta para si – mas são quatro pontas.

Neste percurso, os imaginários de cinema são obliteração (pedagogia centenária das imagens de inversão da flecha de quem atira primeiro). Nele, o controle do videogame pode ser uma retomada para a casa/cosmos de reintegração de si no Aqui – “onde se ouve estrelas e se vê dor, é onde tuas cascas podem cair”. Aqui.

PretEspaço também é um avião em que “todas as pessoas são negras – pela primeira vez” (e sempre-já), em NoirBLUE – deslocamentos de uma dança (Ana Pi, 2018).

“O piloto. Sua equipe.

As pessoas da primeira classe”.

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O PretEspaço sonha e abençoa as que vieram depois e antes, NoirBLUE – deslocamentos de uma dança (Ana Pi, 2018).

É o viajar com Ana Pi para África subsaariana pela primeira vez – e sempre-já.

Travessia entre “Mas você é daqui” e o “Seja bem-vinda de volta” ouvidos no controle de passaporte – nesta cidade zoneada se pode passar.

Também é Ana Pi que se coloca no espaço junto, se integra, dois pés firmes no chão… e a cor da terra, o rio preto, a tempestade tropical, a dança que faz “Ano bom” na ponte (e os trabalhos invisíveis abaixo dela), os gestos que sempre-já eram conhecidos pelo corpo, o cheiro de dendê na vendinha… em Contagem, Betim, Niamey, Ouagadougou, Bamako, Lagos, Enugu, Luanda, Malabo, Addis Ababa, Abidjan, Nouakchott…

O PretEspaço inventa o visível-invisível-visível_1
O PretEspaço inventa o visível-invisível-visível em NoirBLUE – deslocamentos de uma dança (Ana Pi, 2018).

Cada uma dessas cidades. E nenhuma delas. Não cidades imaginadas, mas originárias e integradas: “eu vim de todos esses lugares”, já sabe Ana Pi. É o corpo-azul-preto na cidade, a cidade sobre o corpo-azul-preto e o corpo-azul-preto reinscrito na imagem dele próprio.

Mas não é São Paulo.

É o gozo que não se quer (se pode?) controlar e destrói a cidade em A Felicidade Delas (Carol Rodrigues, 2019). Gozo de tesão e medo. De fuga e fuga na fuga.

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O PretEspaço descobre o amor em A Felicidade Delas (Carol Rodrigues, 2019)

Antes é a penumbra, os becos, as vielas, os caminhos interrompidos e os labirintos de ruínas, o pixo. Na imagem escura e no silêncio, o pretEspaço se expande e apalpa. Não é necessário ver mais para sentir arder os sorrisos trocados, a respiração partilhada queimando os rostos tão próximos (mas ainda não). E, finalmente, no pretEspaço: as mãos se entrelaçam, as bocas se comem. A cidade que morra submersa no prazer e nos fluídos delas.

O PretEspaço jorra o amor
O PretEspaço jorra o amor, em A Felicidade Delas (Carol Rodrigues, 2019)

O PretEspaço não cabe (na cidade, no cinema, nos filmes e nesse texto) e inunda.

Não precisa ser imaginado.

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