Vaga Carne: o corpo (r)existe

Por Kênia Freitas

Vozes existem
Vorazes
Pelas matérias

Com essas palavras ditas sobre uma tela preta, Vaga Carne (Grace Passô e Ricardo Alves Jr., 2019) se anuncia. Uma voz se apresenta como nossa interlocutora. Ela se declara independente das matérias que ocupa, vagando por carnes vivas e objetos inanimados. A voz nos diz não apenas que existe (indiferente à nossa capacidade de compreendê-la como algo além do humano), mas que sua existência é voraz e prazerosa. É uma existência plena pois desconectada do tempo, ilimitada pois não atrelada a nenhuma língua.

O filme estabelece um jogo de convencimento e sedução entre nós espectadores e espectadoras e essa voz: ela deseja acima de tudo nos fazer crer em sua existência. E nos convida para uma conversa:“Eu não sou um bicho, portanto não posso falar por vocês. Respeito vossas existências. Não tenho a prepotência em entendê-los. Mas vamos tentar dialogar, vamos? De diferente para diferente.” Uma conversa que portanto só pode transcorrer, como a voz sugere, em princípios de opacidades glissanianos: sem a prepotência de entender e assumindo a diferença como basilar e intransponível. Uma voz é uma voz e um bicho humano é um bicho humano. No jogo criado por Grace e Ricardo Alves Jr., a primeira provocação desse convite de conversa da voz é que façamos esse deslocamento do paradigma do humano, do orgânico, do material, do antropomórfico para o inumano, inorgânico, imaterial, disforme: “Sei também que vocês tem dificuldade de entender o que não é vocês mesmos, mas eu vou tentar explicar. Sou uma voz. Só isso. E mesmo sabendo que vocês não acreditam nesse tipo de existência, que não é humana, vim até aqui proferir sons de vossas línguas limitadas, línguas que não se decidem”.

Mas há algo no tom dessa voz.

Ela fala de dentro da matéria – e também de cima. Há um tom de avaliação superior pelos corpos, patos, café, cães, mostarda, estátuas… Às vezes, é uma manifestação de nojo ou desprezo, outras de admiração ou desejo. O marcador da nossa subalternidade como interlocutoras e interlocutores pelas palavras da voz (humanos são “egoístas”, “limitados”) complica esse jogo de convencimento e sedução. Não há encontro ou troca nessa conversa entre diferentes, mas subjugação, penetração e invasão. Nesse sentido, a escolha feita pelos diretores pela manutenção do dispositivo palco/plateia na adaptação da peça para o cinema reforça a importância de um distanciamento entre essa performance voz-e-carne-invadida e quem assiste (de fora e de dentro da narrativa).

Nesta transposição, a inscrição na encenação da primeira parte do filme de uma plateia de pessoas negras que observam de longe a relação voz-carne penetrada é fundamental para mobilizar essa distância na interlocução. A devolução do olhar desses espectadores negros é uma das pistas para nos instalarmos na desconfiança e incerteza diante do jogo proposto no filme – afinal, como a própria voz parece saber: o olhar dos outros é um bicho feroz. Farol e faca.

olhos da plateia

Parte da fruição do filme baseia-se em aceitar a sua especulatividade narrativa e inumana: vozes existem vorazes, e nossas coexistências são possíveis mas não redutíveis a uma única perspectiva. Outra parte, parece-nos estar na desconfiança dessa instância narradora e protagonista dessa voz. Voz que de saída assume uma postura de superioridade relacional. Pois é ela quem nos conduz pelos seus percursos, transformações, descobertas e afecções dentro da carne invadida. Ela é a principal ancoragem discursiva no filme, e o que nos cabe é sermos espectadores desconfiados – ainda que seduzidos pela performance. Há uma linha tênue criada pelo jogo proposto por Passô e Alves Jr. entre não refutar a existência da voz em sua diferença radical mas também não aderir de forma acrítica a sua narrativa de exploração, penetração e invasão. E aqui cabe olhar mais atentamente para a outra personagem nessa narrativa: a carne invadida.

A virada na relação voz-carne acontece quando a intrusa deseja sair e já não consegue mais. Está presa à carne. E, nesse momento, pela primeira vez o diálogo não é mais com essa espectatorialidade externa, mas internamente no amálgama carne-voz. Um acoplado que move-se de forma esquisita a princípio, que se estranha, mas permanece unido. Esse acoplado estranho voz-carne, aliás, nos lembra as figuras quebradas internamente de Corra (Get Out, Jordan Peele, 2017): filme no qual corpos negros são invadidos por subjetividades brancas. Algo não se encaixa. E aqui nos parece que o jogo inicial implode e um outro começa. Nesse momento também se desfaz a separação palco plateia e as delimitações estruturadas do espaço cênico. Os olhos das/dos artistas negras/os espreitam mais de perto. As peles se tocam. E a desconfiança segue. Agora não apenas direcionada à voz mas a esse bloco unido carne-voz, que começa talvez a delinear um corpo.

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E aqui a diferença entre carne e corpo feita por Hortense J. Spillers é crucial[1]. Para entender as fundamentações gramaticais racistas que marcam ainda hoje a existência das mulheres negras diaspóricas, Spillers volta-se para explicar o pensamento filosófico-ideológico que sustenta o processo de colonização e escravização. E olhando especificamente para o que pode separar os sujeitos cativos dos sujeitos livres nesse paradigma colonizador (ou seja, o que pode “justificar” a captura, tortura, violação, etc. de pessoas africanas), ela dirá que aos cativos cabe a ideia da carne e aos livres do corpo. Nesse sentido, a carne seria o grau zero do corpo, em outras palavras o corpo sem conceituação social, sem subjetividade e agência. É preciso considerar o corpo como carne para escravizá-lo.

É preciso considerar o corpo como carne para invadi-lo: “Essa mulher aqui é só microfone, não tem nada a dizer”, nos diz a voz.

Mas o corpo assujeitado sempre se revolta.

fumano

A revolta desse corpo invadido é o que marca o arco final de Vaga Carne. Como o gesto de resistência possível, esse corpo não permite que a voz parta impunemente – mesmo que isso signifique o seu próprio sacrifício. Ele aprisiona e de alguma forma afecta a voz – e em algum ponto ela percebe que não quer mais partir. A carne já não é considerada pela voz um espaço vazio a ser preenchido. O ponto chave dessa virada é a descoberta de uma gestação em curso. A carne é corpo, é vitalismo, gera vida.

Então, na última rodada desse jogo conduzido por Passô e Alves Jr., a voz nos chama de volta para testemunhar o seu ato vertiginoso de olhar para o abismo de sua existência fundada em processos violentos de invasão, penetração, subjugação: “(…) se eu levanto a mão eu sou responsável. O que eu falo eu sou responsável e se nada falo eu sou responsável. E que nada tem o direito de invadir o seu corpo. E que se alguma coisa invadir o seu corpo, que lhe peça licença”. Processo sem escapatória e reconciliação, que passa pelo reconhecimento do corpo não mais como carne, mas como uma mulher negra.

Ela está aqui diante de vocês”.

Ela, assim como as vozes vorazes, existe.

[1] Spillers, Hortense J. “Mama’s Baby, Papa’s Maybe: An American Grammar Book.” Diacritics, vol. 17, no. 2, 1987, pp. 65–81.

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