O mundo é o culpado: O oficial e o espião (Roman Polanski, 2019)

Por João Pedro Faro

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Não há mediações possíveis na cena que abre O oficial e o espião (2019, Roman Polanski). Um letreiro avisa que todos os personagens que veremos foram pessoas reais, seguindo para uma sequência de enquadramentos rígidos da condenação e humilhação pública do jovem militar franco-judeu Dreyfus (Louis Garrel). A praça em que ocorre a situação está dominada por fardados em formação perfeita e cercada por um cenário de CGI da Paris de 1895. Direciona-se, portanto, sem qualquer termo inacabado, o conto de desconforto, injustiça, perseguição e  realidade fabricada dirigido pelo criminoso convicto vencedor do César 2020 de melhor direção.

Através da narrativa envolta nos esforços do investigador Picquart (Jean Dujardin) para provar a inocência de Dreyfus em sua injusta condenação por espionagem, Polanski cria um “thriller de rotina” mais interessado nas implicações visuais do ambiente em que se insere e nos personagens que o formam. Grande parte da duração do filme é construída por transições entre cabines, quartos, escritórios e quartéis frequentados por Picquart, com o suspense da investigação surgindo sempre pela exploração desses locais tão marcados por acessos difíceis, gavetas trancadas, arquivos perdidos e dominações hierárquicas militaristas que impedem penetrações mais incisivas por seus segredos. Predomina a agonia do impossível, a distância entre um homem e um sistema estruturado, colossal, que permite apenas brechas do que esconde de mais tenebroso.

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Espaços em que a sordidez é controlada por convenções ou imposições sociais e políticas sempre estiveram presentes no cinema de Polanski. Em O Oficial e o Espião, esse controle é assumido como mote temático e visual de toda a sua ambientação. Polanski filma grandes salas escuras em planos que não passam do enquadramento médio dos personagens, valorizando imagens aproximadas que potencializam o efeito de intransigência do ambiente militar. Assim, não importa quantos segredos sejam descobertos ou quantas polêmicas sejam provocadas entorno do caso Dreyfus, o que permanece é um pessimismo vigente em desacreditar na possibilidade de sucesso no enfrentamento entre o indivíduo e o sistema. Um estado de vigia também é constante, a partir do momento em que a instituição é questionada, todos os arredores parecem ir se fechando ainda mais. Estamos acompanhando uma construção de universo baseada em regras muito próprias de postura e comunicação, desconjuntada em sair de qualquer eixo pré-formulado. A construção da rigidez do espaço serve como fonte de um “medo do autoritário”, instaurado quando a rotina é quebrada pelo incomum questionamento.

Picquart é um personagem em revolta, porém interrompido em seu ultraje pela manutenção da formalidade militar e pelas posturas obrigatórias do cargo que exerce no espaço em que ocupa. Já os algozes, o grupo da alta cúpula do exército que condena um inocente, são caracterizados pela vilania de suas ações frontalmente impostas e inquestionáveis, fortalezas humanas que protegem princípios tortos carregados por noções de patriotismo que Polanski rejeita. São, em sua maioria, figuras caquéticas, decompondo-se por trás de uniformes intocados, fisicamente rejeitáveis, enquadradas pelo contraponto vívido do rosto de Picquart. Nada é tão claro quanto a cena em que o protagonista visita um antigo superior, enfermo e apodrecido em sua cama, que ainda reverbera com dificuldade um discurso contra estrangeiros: “Não reconheço mais a França”, diz.

O poder vigente é tratado como detentor de tradições rejeitáveis, injustas pela própria natureza, propensas a condenar qualquer um que esteja beirando os limites que impõe politicamente. A grande virada rítmica do longa ocorre após Picquart declarar-se totalmente contra as decisões de seus superiores, desfazendo-se da própria honra que existia enquanto aceitava as barreiras de seu cargo. Polanski permite a idealização de um possível herói justo, de um personagem disposto a desacreditar completamente da instituição a qual dedicou sua vida por perceber algo que desmonta suas crenças. O ideal do francês tipicamente moderno, o anti-idealista nato. Porém, ao mesmo tempo, não permite que as forças da tradição sejam facilmente instabilizadas. O artigo que Èmile Zola escreve sobre o caso Dreyfus, “J´accuse!”, entra como o motor subversivo mais explosivo da narrativa. Uma possibilidade de acusação e enfrentamento direto, porém reprimido e insuficiente em níveis mais gerais. O oficial e o Espião abraça o fatalismo da realidade que propõe, enxerga um poder inalcançável com rancor, busca imaginá-lo em sua sordidez institucionalizada e apontar a revolta, mas nunca acredita que seja passível de uma queda total movimentada pela exposição de suas tripas.

Parte dessa exposição contida, que vai formando-se de documento revelado em documento revelado, apoia o tom do filme que varia do escárnio ao temor. Os superiores de Picquart aparecem, em um primeiro momento, como clara ameaça, vestidos em uniformes impenetráveis e posturas estáveis. No decorrer das tribulações que abrem portas nunca antes abertas, nos aproximamos de humanos mais reconhecíveis e inevitavelmente mais passíveis de exporem pontos de fraqueza. Outra cena que explora a fisicalidade dessas figuras: Picquart é desafiado para um duelo de espadas contra um superior que ajudou a condenar Dreyfus. Estão sem uniforme. Depois de poucos minutos, Picquart fere o adversário no braço. Ferido, ele tenta buscar a espada do chão com o braço perfurado, tornando-se despido de qualquer honra, sendo apenas uma figura tosca tentando se apoiar em um poder armado que não consegue mais empunhar. O poder pode não ser derrubado, mas não quer dizer que esteja a salvo da humilhação proporcionada pela verdade, voltada contra todos os mentirosos.

As noções de verdade e mentira estão apoiadas, dentro da obra, em sua noção de uma sociedade em decadência moral. Não há golpe concretizado, mas há a aparição de uma noção de que alguns traços costumeiramente aceitos não passam de absurdos. O fator mais central, o ódio declarado contra os judeus, em um primeiro momento tratado como costume, sofre um tratamento quase anacrônico no miolo do filme. Picquart, antes dotado de um antissemitismo prosaico, deixa de falar qualquer palavra contra os judeus em dado momento de sua imersão no caso Dreyfus. O que é opressor, o que é falso e é dado como verdadeiro pelo interesse de comandantes caquéticos, torna-se cada vez mais um terror esclarecido e as verdades absolutas são a justificativa de qualquer perseguição que possa ocorrer. A insurreição torna-se obrigatória a favor da justiça.

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Polanski fomenta um ideal de culpa generalizada em todos os cercamentos que condenam Dreyfus. Filma uma França antissemita, tradicionalista, de um nacionalismo autoritário, contra qualquer fator externo. Portanto, a partir de um grupo que defende Dreyfus sempre tratado como uma minoria quase milagrosa, fortalece-se a concepção de que a injustiça contra um oprimido não é somente inevitável como também incentivada pelo poder. A instituição militar é retratada quase como comandante de toda a nação, O oficial e o Espião é tão firme em representar o alcance íntimo de órgãos de inteligência do exército e seus mais poderosos membros que surgem como o contorno oficial do universo retratado. Os rumos do mundo pertencem aos fardados, suas armas e bigodes, e Polanski é incansável em retratar todo o terror e todo o ridículo dessa realidade.

 

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