Sofá (Bruno Safadi, 2019)

Por João Pedro Faro

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Não é grande elogio dizer que determinada obra é “sobre o nosso momento”. Muito mais interessante do que isso é perceber um trabalho como desmembramento de imagens inevitáveis ao que está sendo produzido atualmente, e a partir delas gerar impressões e sensações que remodelam o que já era conhecido pelo espectador antes de entrar em contato com a produção em si. Sofá, de Bruno Safadi, é um filme de desmembramentos. Desde o ator global visto como potência de um cinema sem distribuição comercial até a reinvenção de imagens cotidianas do Rio pelo filtro de um cinema interessado em som e textura antes de poder interessar-se pela própria atualidade do contexto em que se insere.

Entender o popular e o erudito como frutos de um mesmo chão é o primeiro passo para que filmes como Sofá ainda possam existir. Joana Darc (Ingrid Guimarães), removida de sua casa pela prefeitura para obras olímpicas no Rio de Janeiro, e Pharaó (Chay Suede), o pirata caolho de língua presa, são personagens que carregam tanta a história de seus títulos quanto suas imagens de celebridade, e Safadi aproveita as duas possibilidades imediatas disso ao inseri-los em ambientações e enquadramentos que sempre valorizam o artesanato de cada plano para realçar quem está em tela. É pela complexificação do aparato fílmico, típico das referências mais do que escancaradas ao autor que se estendem desde experimentos seculares de película até o cinema de invenção brasileiro dos anos 70 e 80, que Sofá se torna bem mais do que um experimento banal de inserir rostos conhecidos pela mídia em um filme autoral. Tanto para Safadi quanto para os mentores que carrega na filmografia, esses dois universos separados por conceitos de consumo existem justamente para serem mutualmente devorados. Desde que seja imagem e som, qualquer que seja o material está apto para ser explorado nos mais livres contextos, sempre chocando-se entre o que já esperamos e o que ainda está para ser imaginado.

Sofá se concentra nesses choques. As cores, de rosa, verde e amarelo são intercaladas, mixadas e exploradas quase sempre que muda o plano. Geram a sensação de um microcosmo cheio de capacidades próprias de mutação, uma utopia visual que é contraposta por uma realidade rasteira que sempre ocupa o extracampo do filme e, vez ou outra, se infiltra nas imagens do longa apenas para recapacitar os desejos de desmembramento que Safadi busca no que é possível e no que talvez seja impossível.

Por mais que lide com pessimismos diretos e ocasionais obviedades inevitáveis do pós-apocalipse olímpico carioca, não existe cinismo em sua frontalidade. O que é carregado pelas duas performances principais é uma capacidade lúdica em aproveitar possibilidades oferecidas por um cinema de imediatismo criativo, de derivações muito claras que nunca estão escondidas e por isso são tão bem aproveitadas para serem reimaginadas e avacalhadas. Como Chay Suede já fez anteriormente em seu brilhante trabalho no A frente fria que a chuva traz (2016), acompanhado do lendário Neville de Almeida (um dos autores digeridos pelo universo de Sofá), a liberdade em poder escrotizar conceitos de atuação do cinema nacional, no caso do Frente Fria, o playboy, e no caso de Sofá, o bandido carioca, gera alguns momentos de genuíno brilhantismo da avacalhação filtrada pelo tratamento de imagem de um cinema de profundo valor imagético. Novamente, o plano popular e erudito coexistem em invenção.

Ainda é gratificante perceber o tal pessimismo do longa como um desprezo pela reconciliação. Joana Darc não consegue sua casa de volta, é traída pelo plano superior do poder assim que confia cegamente nele. Nizo Neto, que reinterpreta o prefeito do Rio como um nobre francês, brutaliza a obviedade de certas imagens e reafirma que não há espaço para simbolismos ou metáforas, apenas para a extrapolação de conceitos mais do que enraizados. Aí que está o elogio justo a Sofá: não é sobre “o nosso momento”, é sobre qualquer momento, sobre a percepção de que a paródia é cotidiana e não há tempo para qualquer metáfora que seja, nos resta a avacalhação. Melhor do que isso é ver como a maior traidora da narrativa, a filha do prefeito interpretada por Laura Neiva, tem como único figurino a camiseta do New York Herald Tribune usada pela personagem de Jean Seberg em Acossado (1960). Portanto, Godard existe tanto como referência quanto algoz, elevando o poder de escárnio que o filme busca a todo momento.

Júlio Bressane, que trabalha com Safadi há duas décadas e que está nos nomes que abrem o filme, já chamou o cinema de “música da luz”. Essa definição seria, em superfície, saber como ritmar o que está sendo iluminado e a partir disso possibilitar. Sofá leva esse conceito para se movimentar como um dos sambas de rádio que faziam os embalos do Rio no início do século passado: uma dialética entre o humor escapista, a marginalização do que o cerca e um pé firmado na noção de um mundo mais próximo da realidade. O que define o alcance de suas pretensões é a execução, e Sofá é satisfeito em fazer de seu processo de criação o meio transformador de todo um universo de derivações, sempre pronto para ser demolido e reconstruído.

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