Por Bárbara Bergamaschi
Jean Cocteau previa que, nos anos 2000, os jovens artistas não estariam sentados e muito menos entre duas cadeiras*[1]. De fato esta parece ser a pré-condição de existência do artista no Brasil de 2019 (em breve, 2020). Hoje, mais do que nunca, vive-se sob a ponta dos pés em um constante estado de emergência, prontos para o devir-desvio da torrencial chuva de descalabros vertiginososo preferidas por um (des)governante digno de Ubu-Rei. Como pierrots tragicômicos, os artistas se equilibram de maneira peri-patética no ar, sendo lufados de um lado para o outro pelos furacões do mau-tempo. Os ataques convocam defesas, e assim vemos poetas – se me permitem uma imagem “ao estilo” da veia mitológica de Cocteau – com de escudos de Perseu, tentando lutar contra os monstro ctônicos contemporâneos.
A retórica se baseia em um espelhamento, é preciso trabalhar dentro da lógica do “inimigo” que impera: justifica-se a existência da arte por números e cifras. É o que se vê na cartela de encerramento de Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho, por exemplo: ”Este filme produziu cerca de XYZ… quantidade de empregos, de renda, de lucro… Veja como a nossa arte gira a roda da economia!” Ora, não desmerecendo o mérito e o esforço do argumento, mas não haveria um perigo inerente à essa lógica? Filmes de baixo orçamento e que não mobilizam um grande número de profissionais e público pagante não tem valor para sociedade? Devem ser descartados? Não tem razão de existir?
Tendo este panorama distópico em mente, me pergunto: como produzir algum tipo de pensamento sobre o valor da arte para além de um discurso da rentabilidade alinhado à lógica do capital? Em tempos de ataque à cultura e aos artistas, como pensar o trabalho de um poeta- para além das justificativas financeiras e industriais? Como produzir uma nova forma de pensar a “economia das imagens”[2]? É isso que investigarei nessa crítica do filme “Orfeu” (1950) de Jean Cocteau, retomado recentemente no Brasil pela montagem dirigida por Felipe Hirsh da Opera-adaptação de Philip Glass, encenada no Theatro Municipal do Rio de Janeiro no final do mês de Outubro desse ano.
Tudo que não invento é falso. – Manoel de Barros
Jean Cocteau, o cineasta surrealista, representante mais notável da avant-garde francesa, dizia que sempre preferiu a mitologia à história porque: “a história é feita de verdades que eventualmente se transforma em mentiras , enquanto a mitologia é composta de mentiras que eventualmente se tornam verdades”. O mito de Orfeu foi a narrativa privilegiada escolhida por Cocteau para servir de parábola sobre o papel do poeta na sociedade – e por poeta aqui entende-se todos aqueles que fabricam algo da ordem da aesthesis, obras que agenciam os cinco sentidos, em suma qualquer artista, aí incluso músicos, pintores e cineastas. Cocteau adapta o mito grego para o seu tempo na trilogia orféica composta por: Sangue de um Poeta (1932), Orfeu (1950) e enfim no Testamento de Orfeu (1960).
O mito original conta a tragédia do poeta e tocador de lira homônimo, que a todos emocionava com suas composições e cantos. Orfeu perde sua amada, Eurídice, e resolve descer ao Inferno para trazê-la de volta à vida. Após ultrapassar todos os obstáculos do submundo com sua cítara – sendo inclusive capaz de adormecer e amansar a temida besta-fera Cérbero, cão de três cabeças, guardião do portão do Inferno – Perséfone, mulher de Hades e rainha do submundo, concede ao poeta à alma de Eurídice. Ela autoriza que retorne ao mundo dos vivos com sua esposa, desde que não olhe para trás durante o percurso. Orfeu não consegue manter sua promessa, pois no último segundo se vira para ver se alma de Eurídice o acompanha. Neste momento ela é rapidamente puxada de volta para o mundo dos mortos, sumindo em um piscar de olhos. Resulta em um fim melancólico a Orfeu que, desolado, termina despedaçado no rio Hebro pelas Bacantes (também conhecidas como Ménades), mulheres do séquito de Dionísio, que não se conformam com a indiferença que o poeta reserva à sua lascividade e erotismo.
Na nova visão cinematográfica do mestre francês, o famoso poeta “Orfeu” (Jean Marais) encontra-se em uma fase madura, já reconhecido por seus pares e, por isso, vive enfastiado com sua mulher e vida burguesa. Em meio a uma briga de bar, apaixona-se de forma obsedante por uma personagem misteriosa, a rica Princesa (Maria Casares), patrona dos jovens poetas da cidade, que descobrimos se tratar, com efeito, da própria Morte. A paixão é reciproca, e a Princesa orquestra o sequestro do poeta para a dimensão dos mortos, arquitetando também a morte prematura de Eurídice (Marie Déa), esposa de Orfeu, por quem nutre um terrível ciúmes. Dividido entre o amor terreno e o etéreo, Orfeu se aventura nas profundezas do inferno, a princípio com a motivação de salvar sua esposa, porém, vê-se que sua real intenção é explorar o próprio inferno interior e por fim unir-se com o seu verdadeiro amor: a morte, que oferece-o vida eterna – desejo, em última instância, de todo poeta.
Uma primeira indagação que o filme de Cocteau nos propõe é pensar a da figura do poeta. Afinal o que é um poeta? Para que existe? Qual sua função na sociedade? Na Grécia antiga acreditava-se que os poetas eram aqueles que eram visitados (geralmente em seu sono) por uma das nove musas[3]. Nesse encontro mítico era o momento no qual ocorria o que hoje nós nomearíamos como a “inspiração”. Assim, o produto artístico chegavam aos homens como resultado da união do divino e do profano. As obras de arte eram, dessa forma, consideradas como algo da ordem do sagrado. Os poetas na Grécia, eram seres escolhidos pelos deuses, ponto de contato entre dois mundos, eram, portanto, extremamente respeitados. Na narrativa de Cocteau, esta função “relacional” do poeta é bastante evidente na misé-en-scène em que Jean Marais se torna obcecado pelo rádio que sintoniza a frequência do submundo onde mora Maria Casares. O rádio seria uma analogia para essa espécie de labor artístico. Como uma espécie de “antena” de sua geração o poeta estaria a todo tempo “a serviço”, conversando com os poetas do passado, desvendando e atualizando as mensagens cifradas nos tempos presente em uma nova forma ou linguagem. Como uma espécie de fio que conecta as pontas do tempo, o mundo mítico ao mundo secular, em suma, o artista seria uma ponte entre a vida e a morte.
“O poeta é de certa forma um trabalhador, de um modo é mais profundo que ele mesmo e que mal conhece as forças que o habitam. Eu diria até: um esquizofrênico que habita a todos nós, e de que quase todos os adultos têm vergonha, de quem só os heróis, as crianças e os poetas não se constrangem. Os poetas são os intermediários entre esses “esquizofrênicos” e o exterior, eles tentam tornar isso viável. (…) Não sou responsável por meus personagens e por meus poemas, sou apenas um intermediário, como um médium, uma mão de obra. Todos os poetas são pontes e trabalhadores braçais dessas forças misteriosas que os habitam” – Jean Cocteau em S’adresse à l’an 2000 (1962)
Os poetas eram também conhecidos na Grécia republicana como aedos, aqueles que declamavam as tragédias e as comédias para um grande público, de forma decorada. O poeta eleito como vencedor pelos espectadores era aquele que conseguia imprimir melhor emoção às histórias que todos já sabiam de cor, ou seja, o valor de um poeta não residia na sua originalidade (lembremos que o “gênio criativo” é um mito burguês moderno) mas na sua capacidade de interpretação. Artista era portanto não apenas um mero “imitador”, mas sim um tradutor, quem melhor permitia que as expressões e paixões dos deuses chegassem aos homem de uma maneira inteligível.
A expressão “de “Cor”, no original do latim corresponde a palavra coração pois antigamente se pensava que o coração era o órgão da memória. Os poetas eram portanto aqueles que tinham as narrativas – ou, em grego, os mythos – guardados no coração. Eram os guardiões da história de um povo. Aristóteles inclusive, em sua Poética, afirma que o poeta seria mais importante que o historiador, pois enquanto o historiador apenas registra e produz documentos, o poeta organiza o tecido da memória, em um linha causal linear (com começo, meio e fim), dando enfim sentido à vida coletiva experimentada por todos os cidadãos. Ao contrário de Platão que desconfiava e via um perigo no potencial farsesco do poeta, para Aristóteles, a capacidade fabuladora do artista permitiria a criação de um princípio de identidade e coletividade, transformando-o em um ator social de suma importância para a polis grega.
Há muitas interpretações possíveis para o fim trágico do mito de Orfeu. Em uma análise primeva poderíamos dizer que a moral da história é que não deve-se olhar para o passado afim de não perder o que se conquistou no presente. Uma outra leitura alternativa seria a de não se questionar as determinações divinas e do destino, questionar a autoridade e duvidar das ordem dos deuses é algo que não ocorre sem sofrimento e punições. Uma das interpretações que acho mais interessantes é a que está presente em O Banquete de Platão, em que Fedro discursa sobre amor usando como caso exemplar o de Orfeu:
“(…) A Orfeu, o filho de Eagro, eles o fizeram voltar sem o seu objetivo, pois foi um espectro o que eles lhe mostraram da mulher a que vinha, e não lha deram, por lhes parecer que ele se acovardava, citaredo que era, e não ousava por seu amor morrer, mas maquinava um meio de penetrar vivo no Hades. Foi realmente por isso que lhe fizeram justiça, e determinaram que sua morte ocorresse pelas mulheres; “.
Orfeu, nesta interpretação, é punido pelos deuses por desconfiar do amor terreno dos homens. Assim, ao se virar para trás, expõe para si mesmo e para os outros que no âmago do seu ser não estava verdadeiramente compromissado com sua amada, não tinha fé no seu amor. Cocteau também expõem este lado perverso de todo artista, que no afã de adentrar a imortalidade, se sobrepõe aos outros “reles mortais’. O desejo de se preservar na História com H maiúsculo faz com que fique cego para o seu semelhante, a assim, se torna autocentrado, extremamente cruel e egoísta. No filme, Orfeu não dá ouvidos ao ‘chofer’ da Morte – Heurtebise (François Périer) quando ele lhe revela que sua ‘Eurídice’ (Marie Déa) está prestes a morrer. Orfeu também não consegue perceber que a sua passagem para imortalidade está garantida e “ bem debaixo do seu nariz” – quando ele ignora todos os sinais de que Eurídice está grávida.
O egocentrismo fatal do artista também se metaforiza na presença do espelho em toda a narrativa. Diz a Heurterbise: “vou te dar o segredo dos segredos. Espelhos são as portas através das quais a Morte vem e vai. Olhe-se no espelho por toda vida… e verá a morte trabalhando, como abelhas numa colmeia de vidro…”. É através do reflexo, do distanciamento de si e da conversão do artista enquanto imagem – ou seja, da visada de si enquanto figura pública, enquanto objeto – que o artista se aproxima da morte. Faca de dois gumes,o Ego é causa e fim do artista, razão de sua glória e decadência. Nessa hora vale lembrarmos do mito de Narciso, que comovido por sua própria beleza no reflexo do lago se apaixona pela própria imagem, e se esquece do real a ponto de se afogar. Na encenação de Felipe Hirsh, a tópica do espelho como porta acesso para o mundo invertido- a la Alice – é o que orienta toda a movimentação dos atores em cena, pautada pelas saídas e entradas construídas por meio de um enorme paredão de espelho cenográfico fixo durante toda a peça.
Cocteau, fornece, à sua maneira, uma releitura do mito, fornecendo uma nova chance de redenção de Orfeu, punido pelos deuses pela sua falta de amor ao próximo e pelo seu excesso de ambição. De certa forma, Cocteau busca restaurar a moral do poeta diante da sociedade. Como no filme, Elsa La Rose (1966)[4] – documentário sobre a musa do poeta surrealista Louis Aragon – Agnès Varda busca demonstrar que a verdadeira imortalidade está nos pequenos gestos, banais e mínimos do amor “comum” e mundano. Este desejo transgressor de re-encantamento do mundo cotidiano seria o cerne do movimento surrealista que desejava utopicamente reestabelecer no coração da vida humana, momentos “mágicos” apagados pela civilização ocidental burguesa. Aos poetas nos cabe a revelação do divino-maravilhoso imperceptível mas ainda assim diante de nós.
[1] Me refiro a expressão idiomática: “avoir le cul entre deux chaises” que o diretor se refere no filme “Jean Cocteau s’adresse à l’an 2000”de 1962. Para ver o filme na integra acesse: https://www.youtube.com/watch?v=–LR0nd67t8
[2] Segundo Marie-Jose Mondzain a “Economia” viria do conceito Oikonomia que significa justamente um pensamento e não uma prática. Economia se configura como um arranjo ou modo de uma sociedade se relacionar com “o que está em jogo”, uma palavra para se referir a um dispositivo ou um regime de visualidade. A “Economia das Imagens” portanto não reflete o que ela “mostra” pela semelhança mas sim pelo o que ela traz a tona, torna visível (e inversamente torna invisível), ou seja os discursos que ela engendra. Para mais ver o livro “Imagem, Icone e Economia” (2003) da autora.
[3] Sendo elas: Calíope, musa da Eloquência; Clio ou Kleio musa da História; Erato, musa da Poesia Lírica; Euterpe, musa da Música; Melpomene, musa daTragédia; Polônia, musa da Música Cerimonial (sacra); Tália, musa da Comédia, Terpsícore, musa da Dança; e por fim, Urânia,musa Astronomia e Astrologia.
[4] Filme disponível online: https://vimeo.com/97016643