Tragam-me a Cabeça de Carmen M. – Entrevista com Felipe Bragança e Catarina Wallenstein

Por Pedro Tavares
Traga-me a Cabeça de Carmen M. é uma espécie de intenso filme-reflexo dirigido por Felipe Bragança e Catarina Wallenstein que em tempo hábil registra o Brasil em nova decadência pela relação passado-presente como um corpo, representado com potência pela própria Catarina Wallenstein. O filme passou por Rotterdam, Tiradentes, Indie Lisboa e entre outros relevantes festivais e conversamos com os diretores sobre questões mais pulsantes após a exibição.

Felipe, este é, de longe, o seu filme mais frontal no que diz respeito ao corpo e a cidade, apesar de ser uma matéria presente em todos os seus trabalhos. Gostaria que você falasse um pouco mais sobre este regime de urgência que o filme explora neste diálogo da personagem com a cidade.

Felipe: Acho que meu impulso de cinema passa muito pela relação dos afetos de personagens com as camadas de tempos históricos acumulados nos territórios geográficos e simbólicos em que vivem. Desde o A Alegria (2010), passando pelo roteiro do Praia do Futuro (2014) e pelo Não Devore Meu Coração (2017). Especialmente cidades, pela sua escala humana e tátil. Aqui, por se tratar da ideia de um olhar sobre um território geográfico e simbólico mais amplo, o Brasil, em processo de destruição e ruína, em desaparecimento, o corpo da personagem surge de forma ainda mais determinante como ponto de sobrevivência possível, como musculatura agindo nesse vazio abismal em que o Brasil estava ameaçando mergulhar enquanto fazíamos o filme. Daí talvez a sua sensação de que o filme é mais determinado nessa relação muscular com a protagonista.

Ainda que seja praticamente impossível fugir desta pauta caótica em que vivemos, é possível dizer que este tipo de abordagem pode se repetir em um próximo filme?

Felipe: Meu próximo longa, em lenta finalização para chegar aos festivais em 2020, se chama Um Animal Amarelo e é também sobre a relação entre os afetos acumulados em um corpo imaginado e as camadas históricas que o atravessam e afetam.

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Através da figura lunar de Carmen Miranda há todo o laço alegórico do filme, que me parece uma saída muito interessante para não-achatamento do tempo pelo diálogo com o passado e também para a construção do conflito, que é um filme que não vê a luz do sol. Por que esta escolha?

Catarina e Felipe: Carmen é mesmo uma lua. Que bela imagem a que você propõe. Carmen moveu a gravidade do panorama cultural brasileiro na década de 30 ao propor de forma intuitiva e genial a antropofagia como gesto do corpo cultural brasileiro. Carmen era esse jogo de máscaras, de invenção em cima de si, de mostrar e esconder, de ir além dos limites de seu pequeno corpo de menina portuguesa de classe média baixa e moradora da Lapa. Carmen, no filme, é assim, não um objeto, mas a nossa máquina do tempo. Talvez uma máquina dos tempos. Não para voltar ao passado, nem prever o futuro, mas pela capacidade que ela tinha e tem de ser uma acumuladora de camadas culturais e históricas que construíram uma utopia de identidade brasileira, que hoje se perde, se perdeu, se liquifez em suas contradições. A Carmen que nos interessa é a devoradora de limites, demolidora de “não podes”, a mulher incrível que nas décadas 20 e 30 desafiou o lugar guetificado que a música negra brasileira tinha, e se propôs a cantar samba na rádio, a gravar samba, a propor um Brasil em que o caos, a cacofonia e a invenção por acumulação seriam o norte. Carmen Miranda foi uma das grandes inventoras do Brasil. Em sua performance de corpo, voz, rosto, foi uma das primeiras performers a construir uma persona pública assumidamente travestida, performática e foi isso que a levou a ser contratada pela Broadway e por Hollywood já na segunda fase de sua carreira, anos 40, quando já era uma figura genial e central no Brasil. Sem o acontecimento Carmen a gente não ouviria samba como ouve hoje em dia. Sem Carmen, não haveria tropicalismo nem Caetano. Sem Carmen, não haveria David Bowie.

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Talvez seja um assunto batido quanto à produção do filme, mas ainda julgo importante já que ele é inerente ao filme em si: o filme foi produzido após o incêndio no Museu Nacional, em época de Copa do Mundo e em pré-campanha para as eleições de 2018. Como equilibrar tudo isso em um filme com rigor artístico tão pulsante?

Felipe e Catarina: Resolvemos fazer o filme num impulso apaixonado de reagir ao mal-estar cultural e político instalado no Brasil ao longo de 2018. Filmamos em Julho, durante a Copa, já antevendo a tragédia política que viria, e ao longo da montagem, que se deu até final de Outubro, fomos acumulando e absorvendo elementos que nos cortavam o cotidiano. A destruição do Museu Nacional foi assim, nos tomou de assalto e foi trazida para o corpo dramático do filme. Então a solução para sua questão era apenas não deixar afetar pelo que estava em torno de nós e ir acumulando no corpo do filme.

O filme viajou por diversos países recentemente e talvez estas chagas do povo brasileiro não sejam tão evidentes para o público estrangeiro, ainda que exista o pensamento do sucesso do brasileiro em outros países e a desgraça do estrangeiro no Brasil, uma terra de eternas promessas. O que reverberou para estes públicos?

Felipe: O mundo inteiro está olhando preocupado para o Brasil e o filme tem tocado fundo nos olhares estrangeiros. Talvez o emaranhado simbólico seja mais denso para eles adentrarem, mas o sentimento de que o Brasil como território simbólico, como linguagem, parece estar se automutilando, é evidente para todos e alvo de espanto e tristeza. O Brasil é uma riqueza planetária. A antropofagia brasileira é um oxigênio de humanidades. Não é apenas uma questão local se o Planeta Terra perde o Brasil, como está perdendo.

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Uma questão mais técnica e de logística: o filme tem 60 minutos e produção independente. Felipe ja passou por modelos diversos de produção e distribuição nos últimos anos. Para “Carmen”, fora as exibições em festivais, como você pensa em chegar até o público?

Catarina e Felipe: Vamos fazer algumas sessões especiais com a nossa presença e estamos pensando em uma pequenina distribuição em algumas capitais no começo de 2020. Mas o que mais queremos agora é fazer sessões com conversas, trocas, pensamentos. Esse filme foi pensado diferente de outros, escrito e produzido em 6 meses, tinha mesmo o intuito de ser emergencial, pequeno, artesanal e humano. Então o que mais nos está interessando agora é a conversa, a escuta. Recuperar o exercício da escuta e da reflexão nesses tempos de reações apressadas, surdas e definitivas sobre tudo. Por isso talvez o filme seja um musical: a primeira coisa que se faz para recuperar ou aprender uma língua, uma linguagem, não é falar. É escutar. É sentir seus sons. Os fascistas puristas em Brasília hoje podem tentar destruir o Brasil da mistura e da bagunça e da incongruência que eles tanto odeiam, mas os sons ficam. E acreditamos que vão ecoar por muito tempo. Como a Carmen.

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