Por Chico Torres
Desde a segunda metade do século XIX e, sobretudo, início do século XX, a tecnicização da vida nas grandes cidades passou por um processo de aceleração nunca antes imaginado. Desenvolvimento do capitalismo, crescimento populacional, distribuição de mercadorias em massa, tráfego urbano, meios de transporte e comunicação, tudo isso entra em conjunção com a inserção da tecnologia na vida cotidiana. Um contexto que, desde o seu surgimento, gerou uma perspectiva dúbia em relação àquele novo mundo: a cidade apresentava, ao mesmo tempo, o sonho e pesadelo humanos.
Ao mesmo tempo que os indivíduos usufruíam do conforto e da praticidade ocasionados pela inserção da técnica no cotidiano, surgiam constantemente novas demandas psíquicas e físicas que se impunham e precisavam ser absorvidas. A máquina em toda a sua força e velocidade não só gerava medo, mas uma série de novos estímulos. Diante disso é que a modernidade fora compreendida por pensadores como Simmel, Krakauer e Benjamin em um sentido neurológico: tal condição, ao desenvolver hiperestímulos, proporcionou um novo tipo de experiência subjetiva. A vida, pela primeira vez, estava marcada por choques físicos e perceptivos sem precedentes.
É partindo dessa perspectiva histórica que quero pensar em Tetsuo: o homem de ferro (1989), de Shinya Tsukamoto, filme cultuado por sua subversão e ligação com a denominada cultura cyberpunk. Para além da sedução fácil de pensar a obra em seus adjetivos mais evidentes, reduzindo-a a uma caricatura, quero propor uma análise que aproxima Tetsuo desse olhar ambíguo que recai sobre o papel da técnica na vida moderna. No filme, a presença constante do pessimismo e do conflito através da relação descontrolada entre corpo e máquina, pode ser compreendida também como uma reação ao ideal de progresso, emergindo como crítica à modernidade através da maximização simbólica dos barbarismos a partir de tal relação.
Tetsuo retrata uma máquina guiada pelo seguinte propósito: habitar o corpo humano e o mundo como um parasita. Uma invasão que não se explica, que não possuí uma lógica interna (como, por exemplo, em Blade Runner e Matrix, filmes onde a máquina possui um plano “lúcido” e que depende da vida humana para se concretizar), mas que apenas perturba a integridade física e mental das personagens. Constantemente a obra afirma, por um simbolismo que sempre tem como ferramenta um tipo de fisicalidade extrema, que a humanidade não soube se utilizar da técnica, voltando a um estado de barbárie e incompreensão irremediáveis.
O que se vê é uma série de imagens, ainda que agarradas a fios narrativos muito frágeis, que expressam sempre situações-limite, integrando prazer sensual e dor física sob o imperativo do vírus-máquina. Como meio de maximização dessas situações, e uma possível aproximação com questões psicanalíticas, diversas interações sexuais se desenvolvem, todas elas sob o estigma da perversão. Objetos fálicos surgem dos corpos e se personificam, afirmando, violentamente, o poder fálico e patriarcal, sendo causa e consequência daquele mundo apocalíptico.
As técnicas audiovisuais utilizadas por Tsukamoto também buscam explorar gráfica e sonoramente uma perspectiva acelerada e desordenada que rementem a esse mundo absorvido pelo processo industrial. A montagem descontínua; a câmera na mão (uma personagem à parte que explora a falta de objetividade inerente ao filme) e as alterações nos recursos fotográficos; muitas imagens em stop motion, picotadas e aceleradas; a trilha sonora que reproduz sons maquinais, todos esses elementos revelam o desejo de construir um filme que se mantêm à distância das formas contemplativas, com o nítido objetivo de desorientar pelo excesso e de ser um documento experimental que, sob a máscara de pesadelo distópico, se revela como uma pungente crítica à tradição, ao humanismo e ao progresso.
Nesse sentido, podemos alinhar Tetsuo ao dadaísmo e principalmente ao surrealismo, vanguardas que, na ótica de Walter Benjamin, possuíam forças revolucionárias justamente por se fundamentarem na pobreza experiencial do mundo moderno, que pelo próprio esfacelamento dos valores tradicionais da obra de arte se torna um novo motivo artístico. Quando Benjamin escreveu o seu ensaio sobre o surrealismo, afirmou que era preciso organizar o pessimismo, sintoma característico do século XX. O filósofo alemão, interessado no poder revolucionário das vanguardas europeias, viu nesses movimentos, sobretudo no surrealismo e no dadaísmo, manifestações que explodiam os valores burgueses expressos, em arte, pela contemplação e manutenção de um humanismo que paralisavam as forças revolucionárias surgidas através do desencantamento do mundo. Ainda segundo Benjamin, a técnica surge, diante dessa perspectiva, como elemento político fundamental do exercício artístico, sendo a política, agora, um aspecto que deve ser absorvido pela arte. Diante dessa nova perspectiva, exige-se, portanto, uma tomada de posição. É nesse sentido que Benjamin dirá que é preciso não estetizar a política (como fez o nazismo), mas politizar a arte.
As vanguardas teriam a capacidade de se utilizar do inconsciente e do sonho (surrealismo), dos elementos industriais deslocados de sua funcionalidade, surgidos em recortes aleatórios (dadaísmo) e da ruína prematura das cidades modernas para, dialeticamente, propor uma “iluminação profana” que recairia sobre a relação ambígua advinda da modernidade, ou seja, a técnica como libertação e escravização. É assim que Benjamin, pensando na atitude surrealista, irá pensam em um “niilismo revolucionário”, postura pessimista e de consciência crítica da perda irremediável da experiência coletiva, mas que vê na própria pobreza experiencial possibilidades estético-políticas apenas possíveis nesse contexto desolador.
Penso que Tetsuo se alinha a todas essas imagens benjaminianas; que muito antes de ser apenas um filme experimental, horror cyberpunk, ou algo feito para proporcionar o mero escândalo, é uma obra consciente das limitações da tradição e, ao mesmo tempo, do poder político do fragmento, do sonho e da ruína, do surrealismo e do dadaísmo. Em Tetsuo, a ruína surge através da exploração dos espaços vazios, do maquinário abandonado e destruído (muito raramente uma máquina surge em seu estado natural de funcionamento), o que demonstra as intenções de Tsukamoto em exibir essa máquina como elemento atmosférico e, portanto, surrealista. A ruína do mundo revela o fracasso histórico do ideal de progresso, surgindo, em sentido redentor, como reelaboração estética daquilo que só pode surgir como alegoria da tragédia humana. A única possibilidade de redenção, portanto, é a exploração surrealista desses objetos degradados, buscando não uma restauração daquilo que está irremediavelmente perdido, mas um novo caminho em toda a sua radicalidade imagética. Sim, o pessimismo de Tetsuo é, antes de tudo, um posicionamento político.