No circuito de festivais, se tornou constante o uso do cinema como via de resistência diante do momento político de total instabilidade pro audiovisual. Muito dessa resistência se dá de forma direta, sem meias palavras, geralmente pela via do documentário como forma de representar visualmente corpos não-hegemônicos. Por conta desse contexto é muito interessante ver um filme como Vaga Carne, que após ser exibido em Tiradentes agora passa em Curitiba. É um retrato diferenciado porque parte de uma ficção altamente abstrata para organizar um jogo de textura de rostos e luzes que ocultam o entorno pra criar alegorias, presenças intuídas.
A ferramenta de uma suposta voz que toma corpos por possessão é o foco do filme baseado na peça de Grace Passô, e esse conceito pouco corpóreo toma vias palpáveis à medida que a atriz passa a demonstrar os efeitos dessa voz diante do corpo, como uma tomada de consciência de identidade diante do estranho. A violência na qual a voz percebe se deparar ao demonstrar que não consegue lidar com a forma humana de ver seu corpo mantém a urgência durante toda a metragem, num crescendo de percepção das origens dessa violência para desvelar o problema social entranhado nessa dialética.
Quando o filme lida com rumos mais clássicos narrativos em estrutura, organiza seu clímax numa tentativa do expurgo pela fala não alcançado, frustração traduzida no corpo furioso de Passô, explorando a violência do sequestro discursivo através apenas do corpo reagindo à máquina ao redor – alegoria visual explorada justamente para sintetizar figuras cotidianas de opressão que a encenação do filme evita mostrar. Toda a mediação com os rostos espectadores, herança provavelmente da peça de teatro, tenta localizar esse confronto com o sistema social de opressão pela alteridade, como se intuísse que aqueles rostos são afetados diretamente pelo que as abstrações de Passô falam sobre.
É um filme de microcosmo, portanto, em suas escolhas espaciais limitadas ao palco, mas assume essa dimensão política com propriedade e raramente cai na armadilha do simbolismo óbvio. A encenação mínima de Grace Passô e Ricardo Alves Jr, focada especialmente em closes para transfigurar a peça que originou o filme em um estudo de expressões e conflitos de olhares, calcados nas nuances múltiplas do rosto de Passô, orquestra tudo para traduzir o desespero do vozerio ali sendo acostumado e depois abarrotado do corpo – e parece bastar para as articulações viscerais propostas pelo texto. Não há tempo a se perder em Vaga Carne, filme de verdades diretas e luz e sombra elementares, e seu recado ao acender das luzes é claro.