HIGH LIFE (Claire Denis, 2018)

O mandamento do Único

por Felipe Leal

patt3

A nível quiçá muito íntimo, é com o matrimônio entre as leis da economia e os fenômenos biológicos que Claire Denis cada vez mais sutilmente parece se preocupar. Número e corpos; distribuições dos usos e circularidade “tragicossexual” dos genes. Colônias, exército, famílias, máfias, casais, imigrantes – o todo e o diferente se entrechocam em sua obra nos deslizes microscópicos entre os sujeitos. Olhar o sangue de perto, o transe da bruxa pelo transe do olho partilhado, estar próximo o suficiente do homem diante do Nada, até que seu rosto seja único e limítrofe demais para não ser todos. Tracemos, pois, uma rápida e eficaz analogia: se se diz de Solaris (Solyaris, 1971), o símbolo úmido e magnânimo de Tarkovsky, que o planeta é um espelho da alma do homem, poder-se-á dizer de High Life (idem, 2018) que a suspensão humana diante dos astros, neste último Denis, é nosso esperma. E muito como a semente, para as plantas, é infinitamente mais que um minúsculo projétil de vida – é a grafia inteligente, pré-inscrustada, de um movimento de diferenciação para o sol e para a terra, a codificação de um ser novo explicitamente feito não só da planta para ela, mas do todo-mundo que ela habita, que ela é –, não tardará para que nas câmaras monocromáticas de dormência e assassinato o espermatozoide seja também esgarçado, seja sujeito e evidência dessa borda que é para nós uma espécie de abismo.

Muito como em J. L. Borges, e certamente para além da eficácia, digamos, dos quesitos dinâmicos do ritmo, há algo na síntese das elipses da diretora que tem a capacidade de estabelecer um plano de enfrentamento moral, ético, ser-entre-ser inerente, uma espécie de lençol freático sob o efeito do qual seus personagens embatem com deuses encarnados nos elementos que melhor os conjugam entre si. A obsessão e o sangue, a invasão de propriedades e raça, a hierarquia e o sexo aqui se transmutam num lance melancólico e desesperado entre o tabu e a razão de sobrevivência. Isto – o estouro de dados pelo truque da elipse – porque lhe basta um gravador e uma mulher inquirindo um homem apreensivo, com o risco de vida amalgamado nos ombros e olhos, para que a informação trocada tenha não só o valor de um ultimato político, como também o legado de certa forma definitivo, crítico, para a Terra da qual aqueles indivíduos à deriva no espaço se destacaram. São criminosos encapsulados numa missão sem cauda, expurgados do planeta sob falso propósito, e não será preciso dizer mais nada, porque o misterioso oco do espaço sideral se torna ainda mais vazio: é um Nada. É pior que a falta de todas as coisas porque não há volta nem chegada.

A ferramenta de conserto Monte (Robert Pattinson), que nos primeiros minutos escorregara, por um quesito de ângulo, num mergulho espaço abaixo, por esse segundo fator de uma penalização ao Eterno repentinamente refaz o quadro e todos aqueles ainda a vir: não há norte ou sul para a vida à deriva, o corpo é uma estranha e ilusória interrupção no tempo, um contínuo sem nada, perde as funções de sentido, vira uma ferida do futuro; a “vida alta” (vida no alto? vida suspensa? vida flutuante, adormecida?) é um miserável culto àquela que a bruxa vem a coordenar como aposta única, aposta ao Único. Xamã do esperma, chama-lhe aquele a quem todos se referem como ‘O Monge’, o assassino refeito por uma ordem interna. Com o resto de vida devotada a tornar a nave uma ala hospitalar-higiênica de produção de esperma e inseminação, de tentativas cujo esforço de ultrapassagem só reforça a tarefa Sísifica, que o sexo maquínico de Binoche resulte num transe pagão espiralado como Robert Eggers jamais sonharia é um estimulante e um fato inconteste de que só o contato aproximativo, progressivamente seccional, intimizado, disposto ao “sujo”, pode almejar a um excedente que permaneça “para os que ficam”, para todo nosso regime de vida que visa a, que se projeta para sustentar um porvir. Ou seja: há, no filme, (nos filmes) uma preocupação da ordem do transmissível que só pode ser equiparada ao projeto de um filho. Mostrar, implorar que se veja, que alguém possa ver assim e jamais certas coisas. Magia e tabu.

patt4 patt5

Arte; reprodução e prole; ciência; aliás, ganhe o nome que melhor convir, toda aposta até então arriscada pelo homem para sobrevivência de si mesmo é uma resultante de uma ininterrupta mistura. O cinema o conhece bem, o jogo de somas e lances que fabricam um corpo imaterial, e em High Life a montagem de Denis não é menos que um desafio a isto que ultrapassa, um percurso  de convencimento entre o sabido e o que já não se sabe mais. “Você está sentindo?”, “Desta vez eu sei”, “Nesta eu acredito”, diz a filha sobre a tentativa ainda em ponderação de arriscar a entrada num buraco, numa passagem do espaço. É a filha que a médica diz ser perfeita e que a trama esfíngica faz literalmente perfeita: é a restante; provavelmente, até, a última humana, uma messias torta: a urgência com que nos atravessa o diálogo no trem confirma o que o testemunho só faria supor, que algum inédito acontecimento terrestre – sim, estamos diante de um curioso sci-fi – faz daqueles exilados e do retardamento da passagem do tempo fora da Terra uma questão derradeira à vida do homem. Logo na cápsula de expatriados por desvio de conduta.

bino bino2

A concordância do pai é, ali naquele tempo saltado, o atender afetuoso de um pedido sonhado, expansiva fé da criança escolhida, já privada de tudo e, portanto, plena de todos os possíveis? É decisão do homem na projeção (palpite, escolha) mais razoável, pautada no racionamento de si enquanto espécie? À independência excruciante, sensual, da resposta, que é nunca se dizer porque não existe, o desejo e a subtração que lhe persiste como sombra percorrem a clausura espacial em todas as suas técnicas de procriação e adestramento, em toda a responsividade epitelial dos papéis e cruzamentos, até que haja mais um humor, mais uma suave colocação em questão do que uma imagem ensimesmada (porque assim já foi acusada Denis), e é por este humor que a inquietação que vinha tamborilando sobre a mistura de uma observadora tão erótica com um gênero tão “pensante” ganha um gosto violento de excedente e surpresa.

Nos soluços de uma habitação fadada à autofagia do laboratório de existentes, aquilo que Susan Sontag chamou de “imaginação do desastre” enquanto lógica da ficção científica, aqui, replica à nós a catástrofe ao fazê-la humana, concernente a todos, decerto, mas também entre pai e filha. O contorno de um rosto olímpico e frágil, embalsamado e nunca tão vivo em sua linha de vida de faltas, um rosto assim não se via desde que Kubrick colocou máquina e super-homem um defronte o outro, ambos trocando de lugar. O efeito do encontro entre dedos adultos com uma irrisória mão de recém-nascido, aquela imagem já pós-comercial, quem poderia fazer re-trovoar a delicada aleatoriedade que é um nascimento, uma vida, senão aquela que do cinema se fez enteada para tratar, através das peles se imantando entre si, do único tempo que honestamente nos une, o futuro, essa motricidade de linhas debaixo da vista indo a algum lugar até onde reste um. Ou nasça uma – e a natureza, apática ou esperançosa?, depende, mais uma vez, de como se vê a chaga que somos.

FacebookTwitter