Por Chico Torres
Livre de qualquer responsabilidade, a fantasia pura se entrega a esses jogos cromáticos.
(Walter Benjamin em Livros infantis antigos e esquecidos).
As Fábulas de La Fontaine representam uma das lembranças mais significativas de minha infância: mais do que “a moral da história” contida nas adaptações feitas pelo autor francês, o que ficou verdadeiramente gravado em minha memória foi o modo como aquelas breves narrativas eram ilustradas pelas gravuras em preto e branco de Gustave Doré. Hoje sei que as fábulas, assim como o conto de fadas, estão historicamente ligadas a qualidades do universo infantil fundamentais: primeiro a oralidade, depois a ilustração.
Então, me surge a questão: é possível construir uma fábula através de um filme? É possível compor uma “fábula cinematográfica”? Se por questões óbvias, o cinema não é capaz de reproduzir fielmente os efeitos de uma fábula oral/livresca, conseguiria ao menos se aproximar, através de uma composição ou reconstituição, da fábula nos moldes tradicionais? Talvez nesta edição da Multiplot! alguns textos contemplem filmes que vão nesta direção. Por outro lado, penso que o cinema, em seu natural antropofagismo, surge para estabelecer crises em tudo aquilo que toca. No território inimigo do cinema, é possível que a fábula, portanto, seja posta ao avesso e sirva como lastro para a construção de narrativas que podem, inclusive, serem metáforas sobre a própria impossibilidade de se contar histórias como antigamente.
Este parece ser o caso de Valerie e sua semana de deslumbramentos (1970), filme de Jaromil Jires. O diretor, que fez parte da instigante New Wave Tcheca (cito aqui alguns filmes que me vêm à memória: As pequenas margaridas, de 1966; Trens estreitamente vigiados, de 1966; Marketa Lazarova, de 1967), arquitetou um filme que faz jus à sua fonte de inspiração, o romance homônimo de Vítezslav Nezval, escritor ligado ao surrealismo. Por outro lado, o aspecto vanguardista do filme torna-se mais significativo ao se desenvolver sob o pano de fundo da fábula e do conto de fadas: Valerie é uma jovem que vive com sua avó em uma pequena cidade aparentemente feudal. Em um plano maquiavélico, a mulher resolve entregar sua neta a um monstro que em troca promete lhe devolver a juventude perdida. Nesse sentido, há no filme diversas características que remetem ao universo da fábula e do conto de fadas: a presença diabólica e do encantamento por magia; o bucolismo medieval e renascentista, que geralmente compõe o universo fantástico dessas histórias (certamente as fábulas se desenvolveram com mais intensidade nesses períodos); o excesso de cenários e do aspecto pictórico dos planos, reiterando a presença das ilustrações e das cores, elementos característicos do universo infantil.
Valerie parece estar além e ao mesmo tempo aquém em suas intenções simbólicas, não se constituindo nem como fábula e nem como obra propriamente surrealista, encontrando-se em um limiar raramente explorado na história do cinema. Ainda que as associações simbólicas se constituam de forma frágil, suspeita e quase gratuita, através de uma narrativa nonsense que ironicamente pretende dar uma direção, tais associações compõem um filme que consegue ser extremamente crítico, no conteúdo e na forma.
Certamente, o elemento chave da obra é a conscientização de Valerie sobre sua sexualidade. Presenciamos o momento em que, enquanto caminha entre flores e pedras, ela menstrua pela primeira vez e mais adiante confessa: “Eu não sou mais criança, vovó”. A jovem possui um par de brincos que representa um jogo de “perde e ganha”, o que pode significar o lugar de transição no qual ela se encontra (entre a criança e o adulto), passando a compreender que seu corpo se constitui como objeto de desejo. É magistral a forma como se dá a construção desse lugar de Valerie, um misto de ingenuidade e curiosidade sexual que faz com que ela consiga ser o verdadeiro elemento transgressor do filme, já que seus perseguidores são vampiros que escondem desejos perversos sob o aval da religião.
Com exceção de Orlik, personagem que serve como par romântico e testemunha ocular das desventuras de Valerie, todas as figuras masculinas do filme são monstruosas e ameaçadoras. Valerie vive imersa nesse mundo de criaturas quase mortas, mas sua curiosidade e identificação estão voltadas para outra camada social: a de indivíduos que parecem viver num paganismo que se afirma através de uma vivência sexual sem pudores. Essas personagens aparecem de forma quase sempre alegórica e, basicamente, têm como função expor o voyeurismo de Valerie (todas as cenas de sexo desse grupo se dão em ambientes abertos e quase sempre são testemunhadas pela adolescente), servindo de contraste ao moralismo religioso, representado no filme por figuras monstruosas e perversas.
No entanto, na segunda metade do filme se evidencia mais nitidamente seus aspectos, como não acho outro termo mais adequado, surrealistas: a obra se torna extremamente confusa, com um entrelaçar de situações e ambientes que provocam um incômodo que só pode ser sanado pela sempre impecável direção das cenas. Ainda que durante todo o filme a linearidade narrativa seja subvertida, não obedecendo a uma lógica espaço-temporal, nesta segunda parte a obra deixa transbordar seu desejo de nos provocar de modo radical, de elaborar seu caráter crítico mais especificamente em relação à forma. Se nós esperávamos, mais ou menos confortáveis, o desfecho da estranha fábula, somos jogados em uma história que deixa de comunicar qualquer relação razoável entre os acontecimentos, aprofundando seu aspecto irônico e iconoclasta. Valerie se encaminha para um desfecho em que todas as figuras arquetípicas se integram, literalmente, numa dança surrealista dentro da floresta.
Não há mais o bem e o mal. Não importa se Valerie será salva das garras dos monstros ou não. Ela agora está integrada a eles, integrada a tudo que é profano e a tudo que é sagrado. A crítica presente no início do filme se dilui em imagens deslumbrantes, em entrega ao que é dado sem julgamentos morais ou elaborações racionais no sentido cartesiano. Valerie é um filme belo e desconcertante que nos mostra, ao mesmo tempo, a subversão de uma tradição e as mazelas que estão em suas origens, e a impossibilidade de reconstituir aquilo que já não pode mais ser moralizado. Valerie é, antes de tudo, uma fábula amoral.