Por Bernardo Moraes Chacur
Todas as histórias antigas, como disse uma das nossas belas mentes, são apenas fábulas convencionadas; e para os modernos, um caos que não pode ser desvendado.
Voltaire, Jeannot et Colin
Na historiografia tradicional, o surgimento do capitalismo é representado como um progresso natural, a vitória do pragmatismo econômico sobre o feudalismo e as trevas. Nessas narrativas, a miséria e a pilha de mortos acumuladas durante a transição costumam ser retratadas como incidentes lamentáveis, mas periféricos, da grande marcha evolutiva. Essa versão oficial é contestada em Calibã e a Bruxa, de Sílvia Federici, que identifica a violência e a expropriação como elementos indispensáveis para o estabelecimento da nova ordem. A conquista da América e o tráfico negreiro foram, afinal, os grandes financiadores da revolução industrial, que exigiu por sua vez uma força de trabalho empobrecida e disciplinada pela repressão às revoltas camponesas, pela perseguição aos hereges, por um novo sistema de criminalização e pelo cerceamento à liberdade feminina. Sangue e sofrimento permearam cada etapa do processo.
Mas na obra, Federici não se limita em perfilar uma longa sequência de injustiças, dedicando igual atenção ao extenso histórico de revoltas que marcou o fim da era feudal. Para a autora,
O capitalismo foi uma resposta dos senhores feudais, dos mercadores patrícios, dos bispos e dos papas a um conflito social centenário que chegou a fazer tremer seu poder e que realmente produziu “uma grande sacudida mundial”. O capitalismo foi a contrarrevolução que destruiu as possibilidades que haviam emergido da luta antifeudal — possibilidades que, se tivessem sido realizadas, teriam evitado a imensa destruição de vidas e de espaço natural que marcou o avanço das relações capitalistas no mundo.[1]
A transição pacífica rumo ao capitalismo é, portanto, uma fábula convencionada, omitindo a intensidade e potencial subversivo dessa grande sacudida. Essa mesma omissão foi perpetuada pelo cinema, um dos grandes vetores do nosso imaginário histórico. Há, certamente, filmes sobre a luta contra a tirania ambientados no mesmo período abrangido por Federici. Essas histórias costumam assumir, contudo, tons vagos e moderados, esquivando-se de aproximações desconfortáveis entre os carrascos de então e seus herdeiros contemporâneos. Basta lembrar que o protagonista preferencial desse tipo de enredo é o nobre renegado que enfrenta os usurpadores da autoridade legítima: nessas tramas, o problema da ordem constituída é sempre seu desvirtuamento, nunca sua fundamentação. Enquanto consumimos revisões periódicas do mito de Robin Hood, histórias como a Rebelião de Kett (encabeçada por um servo) ou a insurgência de “37 mulheres, lideradas por uma tal Capitã Dorothy”[2] (ambas contra os cercamentos na Inglaterra), seguem na obscuridade, a exemplo de dezenas de outros casos elencados ao longo de Calibã e a Bruxa.
Para além dessa lacuna, também poderíamos questionar a aptidão de um roteiro clássico (centrado em heróis e heroínas individualizados) para representar esse histórico de insurgências coletivas. Essa questão já havia sido levantada por cineastas do bloco soviético, que tentaram retratar a multidão como protagonista da História (como por exemplo, Miklós Jancsó em Salmo Vermelho, de 1972). Mas, salvo exceções, a massa indiferenciada costuma ocupar uma posição bastante diversa na caracterização cinematográfica, onde a contraposição entre personagens principais e uma multidão ameaçadora é uma constante desde, pelo menos, O Nascimento de uma Nação. E, assim como no filme de Griffith, essa distinção orienta-se frequentemente por coordenadas raciais: os nativos da América, África e Ásia como obstáculos para a “missão civilizatória” dos europeus e seus descendentes, reproduzindo nas telas uma retórica mobilizada a cada novo projeto de expansão territorial-econômica. O clichê presta-se igualmente a criminosos, terroristas, exércitos inimigos ou qualquer outro grupo apresentado de forma homogênea e sub-humana.
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À primeira vista, os zumbis pareceriam a continuidade dessa longa tradição, a massa desumanizada por excelência. Mas na obra de George A. Romero, o grande arquiteto do gênero, os mortos-vivos nunca receberam tratamento simplista. Pelo contrário, os filmes compreendidos entre A Noite dos Mortos-Vivos (1968) e Terra dos Mortos (2005) são algumas das explorações mais interessantes já produzidas pelo cinema sobre o conflito entre alteridade e identificação e sobre o potencial colapso de uma ordem ainda mais assassina do que os canibais que a destroem.
O fim da civilização já era um espectro recorrente no terror e ficção científica quando o primeiro filme da série foi lançado em 68, mas o desenlace mais comum para esse tipo de enredo ainda era a superação da ameaça, preferencialmente por meios científicos – a vitória do racionalismo contra a face sombria da Natureza. Noite também parece terminar com a reafirmação do status quo, mas o reestabelecimento da ordem passa inequivocamente pela ignorância e truculência: caipiras armados exterminam os zumbis que encontram pelo caminho e, no processo, executam o herói negro, identificando-o como um dos monstros – desenlace já prenunciado pelo início da trama, quando o grupo (branco) de sobreviventes hesitava entre considerar Ben um aliado ou um risco.
A “vitória” revela-se apenas temporária em O Despertar dos Mortos (78), no qual acompanhamos o agravamento do caos precipitado pelos zumbis, mas consumado pela brutalidade dos vivos. Seguindo o padrão histórico, a resposta das autoridades ao clima de instabilidade é direcionar seu aparato de violência aos guetos: a trama começa com a invasão de policiais a um bairro de negros e hispânicos, produzindo mais uma pilha de cadáveres na declarada intenção de reestabelecer a paz. E ao final do filme, a fortaleza estabelecida pelos personagens não é rompida pela horda de mortos-vivos, mas por um grupo de saqueadores humanos. Na imaginação de Romero, a lógica – política e cinematográfica – do “nós contra eles”, é habilmente subvertida.
Nesse segundo episódio se manifesta uma fascinação pelo apocalipse, o êxtase do abandono do trabalho e do passeio pelo shopping center em um mundo em que o dinheiro perdeu o valor, evidenciando o caráter arbitrário e contingente de uma organização social que tendemos a considerar natural e imutável. Esse esvaziamento de sentido é levado adiante em Dia dos Mortos (1985), em que militares e cientistas tentam aplicar as soluções tradicionais – violência e instrumentalização – a uma situação além de qualquer controle. No segundo grupo, o Dr. Logan defende a conversão dos mortos em força de trabalho, um adestramento que exige recompensas (“eles precisam ser recompensados, Capitão. Caso contrário, como irão fazer o que queremos?”) – que no caso, só pode significar alimento. O exército, contudo, enoja-se com a perspectiva de ter que sacrificar (literalmente) a própria carne. Na falta de consenso, os zumbis invadem a base e despedaçam quem encontram pelo caminho, na sequência mais brutal da série. No desfecho do filme, Bub, a principal cobaia do Dr. Logan reafirma sua dignidade, enquanto o Capitão Rhodes, líder truculento e antipático, é destroçado sem despertar qualquer simpatia.
Romero retornou a esse universo duas décadas depois em Terra dos Mortos (2005). Desta vez, somos apresentados a um condomínio de luxo cujo conforto é sustentado por servos iludidos pela promessa de ascensão social e pelo saque dos subúrbios habitados pelos mortos. Depois de uma dessas incursões violentas, um grupo de zumbis decide organizar-se e retaliar a predação, concretizando a possibilidade de um ponto-de-vista zumbi já sugerido no filme anterior. O deslocamento narrativo acompanha a tomada de consciência por parte dos “monstros”: facilmente ludibriados nas primeiras cenas, solidários e alertas na conclusão da saga.
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Mas qual é, afinal, a conexão entre Calibã e a Bruxa e a tetralogia dos Mortos? Há, certamente, pontos de contato entre as obras: tanto a historiadora quanto o cineasta descrevem cenários de calamidade e anarquia acompanhados de repressões violentas. Ambos articulam, cada um ao seu modo, indignação contra injustiças sociais inseparáveis de desigualdades econômicas. Cada um é, à sua maneira, otimista, ou pelo menos afirmativo: Federici resgata insurreições que alcançaram vitórias importantes, ainda que parciais ou provisórias. Romero imagina uma realidade em que os detentores do poder são vencidos, apesar de toda sua violência, ou justamente por causa dessa violência. Os exercícios de memória e imaginação envolvem, como sempre, posturas políticas.
Todo esse preâmbulo me prepara para admitir que, afinal, não há conexão direta entre Calibã e Bruxa e a tetralogia dos Mortos. Nada sugere que Romero estivesse pensando em alegorias históricas quando conseguia esporadicamente os recursos para retornar a esse universo. Seria, além disso, simplista reduzir uma obra tão rica a uma leitura unívoca. Ainda assim, lendo Federici, deparei-me com situações e imagens que me remeteram a esses quatro filmes.
Como lembra a autora, “a transição para o capitalismo inaugurou um longo período de fome para os trabalhadores na Europa”[3]. A privatização de terras coletivas desestabilizou a produção de alimentos, cuja distribuição também passou a ser condicionada por um novo fluxo comercial. A pressão combinada dessas e outras mudanças reduziu parte expressiva da população à indigência. Legiões de desnutridos assombravam as estradas e batiam desesperados nos portões das cidades.
(…) as principais armas que os pobres tinham à sua disposição na luta pela sobrevivência eram seus próprios corpos famintos, como nos tempos em que as hordas de vagabundos e mendigos cercavam os mais abastados, meio mortos de fome e doentes, empunhando suas armas, mostrando-lhes suas feridas e forçando-os a viver num constante estado de medo frente à possibilidade de contaminação e à revolta.[4]
A indignação e repulsa não se dirigiu, entretanto, às causas da crise, redirecionando-se contra os mais atingidos, conforme atesta o comentário de um médico lombardo em 1630:
O ódio e o terror engendrados por uma multidão enlouquecida de gente meio morta, que assedia as pessoas nas ruas, nas praças, nas igrejas, nas portas das casas, que torna a vida intolerável, além do fedor imundo que emana deles e do espetáculo constante dos moribundos […] só pode acreditar nisso quem já o tenha experimentado.[5]
Em situações extremas, ameaças de canibalismo compuseram o panorama das revoltas, “já que os trabalhadores rebeldes às vezes demonstravam seu desprezo por aqueles que vendiam seu sangue, ameaçando comê-los”[6]. Em Nápoles em 1585, “durante um protesto contra os altos preços do pão, os rebeldes mutilaram o corpo do magistrado responsável pelo aumento e colocaram à venda pedaços da sua carne”[7]. O espectro da antropofagia fez parte da demonização dos revoltosos. No mesmo período, o arquétipo do canibal foi indispensável para caracterizar a suposta selvageria dos habitantes das novas colônias. As vítimas sofreram assim uma dupla violência: de um lado, a desestruturação total de seu modo de vida e de outro, a imposição do estigma de monstros. Esses dois movimentos se retroalimentaram: a imagem de sub-humanidade justificava novas espoliações, que engendraram por sua vez mais miséria.
“A grande multidão dos homens”, escreveu Henry Power, um seguidor inglês de Descartes, “se parece mais com o autômato de Descartes, já que carece de qualquer poder de raciocinar e [seus membros] apenas podem ser chamados homens enquanto metáfora” (…) Os da “melhor classe” concordavam que o proletariado era de uma raça diferente. A seus olhos, desconfiados pelo medo, o proletariado parecia uma “grande besta”, um “monstro de muitas cabeças”, selvagem, vociferante, dado a qualquer excesso (…).[8]
Na concepção que se difundiu, o ser humano é uma combinação – separável – entre razão e animalidade. Às mulheres, aos camponeses, aos africanos e indígenas escravizados, cabia apenas a segunda parte: corpos sem intelecto. E na mesma linha do Dr. Logan em Dia dos Mortos, o pensamento europeu converteu esses corpos em objeto de estudo, visando a sua utilização para fins produtivos. Vivissecções eram realizadas publicamente em “teatros anatômicos”, preferencialmente em condenados. Mas enquanto a ciência buscava explicar o corpo como uma máquina,
Entre a população se difundiu uma concepção mágica do corpo, segundo a qual este continuava vivo depois da morte e esta o enriquecia com novos poderes. Acreditava-se que os mortos tinham o poder de “regressar” e levar a cabo sua última vingança contra os vivos. Acreditava-se também que um cadáver tinha virtudes curativas.[9]
Essa crença relaciona-se com a popularização do canibalismo medicinal na Europa dos séculos XVI a XVIII, “envolvendo carne humana, sangue, coração, crânio, medula óssea e outras partes do corpo, não (…) limitado a grupos marginais: era também praticado nos círculos mais respeitáveis”[10]. Ironicamente, imagens de banquetes antropofágicos foram peças-chave da propaganda que qualificou os ameríndios como criaturas bestiais.
Calibã e a Bruxa abrange muito mais que os episódios e temas periféricos que reuni nesses últimos parágrafos. Espero, no entanto, que esses poucos exemplos indiquem como diferentes discursos foram – e continuam sendo – mobilizados para justificar desequilíbrios, exclusões e fomentar o medo. O cinema acaba sendo mais um componente dessa engrenagem, por inércia ou deliberação. Parte da originalidade de Romero (e de Federici) é justamente a desestabilização desse tipo de narrativa. A cada iteração, o diretor nunca perdeu de vista os piores monstros, sejam os fictícios ou suas contrapartes no mundo real: das milícias que executam o herói negro no primeiro filme aos magnatas manipuladores da última parte, que se beneficiam do ciclo de morte sem jamais sujarem as mãos.
Durante a elaboração desse texto tive em mente a resenha de A Noite dos Mortos-Vivos publicada pela Multiplot em 12 de junho de 2018, escrita por Kênia Freitas (http://multiplotcinema.com.br/2018/06/a-noite-dos-mortos-vivos-night-of-the-living-dead-george-romero-1968/). Espero que ninguém a culpe por isso.
[1] Federicci, Silvia. Calibã e Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução: coletivo Sycorax, São Paulo, Elefante, 2007, p. 44
[2] p.143
[3] p. 155
[4] p. 158
[5] p. 158
[6] p. 318
[7] p. 319
[8] p. 278
[9] p. 263
[10] p. 388