Por João Pedro Faro
Parece existir um abismo entre a natureza celibatária da obra de H.P Lovecraft e a desmoralização de qualquer fantasia sexual perversa na filmografia de Stuart Gordon. Sendo Gordon o mais notório cineasta a centrar sua carreira na obra do autor, a relação entre os dois surge quase como uma contradição. Como alguém que possui em sua ficha prisões por obscenidade e um histórico teatral polêmico poderia ter qualquer interesse na figura puritana de Lovecraft?
Uma literatura de horror essencialmente baseada em uma pesada abordagem científica e um distanciamento de qualquer banalidade não seria imediatamente atrelada a filmes em que uma cabeça decepada com vida própria induz o sexo oral à uma jovem indefesa. Por mais que a erotização de qualquer obra nunca seja novidade para um mundo que movimenta um mercado pornográfico cada vez mais expansivo (incluindo aqui a contribuição de Lovecraft a muitos tentacle porn), os filmes de Gordon não merecem ser colocados nesses mesmos interesses. Partindo de um culto entorno dos espectros do trabalho de Lovecraft e os caminhos que o cinema de terror tomava nos anos 80, o diretor aproveitou toda a tendência do gênero para fazer alguns dos grandes filmes acerca da dominação e da destrutividade erótica e suas consequências físicas que apenas o horror consegue compreender. Longe do moralismo virgem Lovecraftiano, Gordon está muito mais próximo de autores como Sade na tentativa de transparecer os alcances do prazer na destruição carnal.
O clássico Re-Animator: A hora dos mortos vivos (1985), primeiro filme de Gordon, já surge com a firme intenção de simplesmente perverter tudo e todos que estão em tela. Progredindo de personagens comuns no ambiente de uma faculdade de medicina para um massacre de zumbis pelados e superpoderosos no ato final, é clara a vontade do autor em fazer com que o estado caótico seja completo.
Todos os problemas surgem quando o doutor Herbert West (Jeffrey Combs) inicia seu semestre na faculdade com uma experiência secreta que tem como objetivo trazer os mortos de volta à vida. É o questionamento Franksteiniano que por princípio renega as ordens tanto da vida social quanto de princípios cristãos ocidentais. Uma vez colocada nesse meio, inevitavelmente irá despir todos os bons costumes que pareciam bem ornamentados. Apenas depois de ser decepado e se transformar numa cabeça falante, reanimada pelo soro de West, que o doutor Carl Hill (David Gale) pode se sentir confortável para suprir seu tesão sórdido pela jovem filha de seu chefe (Barbara Crampton). Sentindo-se num estado tão asqueroso quanto seus desejos, o zumbi de Hill sequestra a garota afim de torna-la sua concubina. Numa analogia mais direta, é como se o monstro de Frankenstein, ao perceber-se como parte de cadáveres de vários homens, sentisse a libido de todos eles juntos, sendo a condição monstruosa de seu corpo uma metamorfose para alguém mais sexualmente poderoso.
Porém, Gordon nunca condena esse patamar dos corpos hediondos como máxima erótica, simplesmente se contenta em traduzi-los nos melhores aspectos do cinema de horror: as entregas gráficas. A potência de Re-Animator está em toda a capacidade do autor em fazer com que os corpos explodindo, se mutilando, transando e se despedaçando sejam apoiados por sua noção dramatúrgica complexa. Gordon entende que não há nada como um zumbi soltando tentáculos de suas tripas que esteja construído por dinâmicas críveis entre personagens e genuínas motivações anteriores. A mutação dos corpos e seus desejos necrófilos parecem tão grandiosas e acertadas justamente porque não há julgamento em sua existência, apenas um autor buscando fazer com que elas existam em meios competentes de encenação, montagem e narrativa que Gordon surpreendentemente parece dominar já na sua estreia. A dinamicidade e o ritmo quase de overdose que o filme assume desde os primeiros minutos é realmente engrandecedor.
Seu trabalho seguinte, Do Além (1986), considerado filme-irmão de Re-Animator, busca as elevações de fantasias diabólicas através do metafísico. Voltando a adaptar Lovecraft, dessa vez Gordon se apropria das estéticas paranormais do autor em outro conto em que a obscuridade e o desconhecimento de outras dimensões é o estopim para as mais gratificantes metamorfoses do corpo em criaturas regidas por prazeres destrutivos, sendo essa destruição essencial para a concretização do desejo. O pesquisador Edward Pretorius (Ted Scorel) é “abduzido” pelo mecanismo desenvolvido junto com o doutor Crawoford (Jeffrey Combs) que busca acesso à outras realidades. Em seus contatos interdimensionais, Edward vai assumindo a forma de um poderoso ser que transcende as vontades e as capacidades humanas, descontando isso em discursos sobre o “prazer total” de transformar-se em um monstro e em carne humana fresca que atenda às suas novas e jamais experimentadas zonas erógenas. Acontece um falocentrismo muito agressivo em Do Além que parece sempre recair sobre a doutora Katherine McMichaels (Barbara Crampton), desde as tentativas do monstro em forma de pênis de devorá-la até seu destruidor caso com Crawford, que também acaba tendo contato com esse mundo paralelo e percebe um pequeno falo com vida própria saindo de sua cabeça. A sequência em que Katherine veste uma roupa de couro e tenta fazer sexo com Crawford no meio do caos, influenciada por um tesão generalizado que a “outra dimensão” parece induzir, é o exemplo direto de como Gordon sabe aproveitar os absurdismos Lovecraftianos a favor dos interesses carnais de sua obra. Talvez se, num caso similar, o corpo de Jeff Goldblum transformado em mosca gigante incitasse qualquer atração na Geena Davis. Os fins sempre parecem ser as motivações sexuais e os fetiches mais absolutos que os vilões do cinema de horror podem atingir sendo expostos na alta dos efeitos práticos.
A compreensão do fetichismo no gênero não é exclusividade desses filmes, mas a expansão plástica e a criatividade que Gordon concretiza nos extremos da anatomia é singular: O Doutor Edward em Do Além arranca a própria pele, cresce em metros, saliva, se articula, solta suas gosmas e seus tentáculos, domina todo o espaço cênico através de seu corpo grotesco. Engole tudo (e todos) que a imagem alcança em níveis cada vez mais intensos, novamente chegando a um terceiro ato onde tudo já está convertido ao gore. Não é uma dominação puramente sexual praticada pelo monstro, ela é tão total que define os meios do próprio filme pois Gordon cria a liberdade para esses corpos bestiais não terem limites dentro do seu cinema. Quando toda decisão gira em torno de formas bizarras que os corpos assumem, sejam eles mortos vivos, monstros de mundos paralelos ou cientistas malucos com apetites sexuais canibalísticos, podemos dizer que quem assumiu controle desses filmes foi a própria expansão dos mais repugnantes fetiches.
A última grande incursão Lovecraftiana de Gordon aconteceu em 2001, em Dagon. Mesmo quase duas décadas depois de seus trabalhos mais icônicos, o diretor retorna ao caminho do prazer pela perdição em uma epopeia que envolve entidades marinhas possuindo jovens espanholas e um protagonista perturbado (Ezra Godden, emulando direitinho um Jeffrey Combs) que só encontra paz numa vida eterna de sexo acompanhado de sua meia-irmã com tentáculos no lugar das pernas.
Claro que, para que esse prazer final aconteça, meia dúzia de sacrifícios sangrentos acontecem e toda uma vila de pescadores é amaldiçoada, mas nada que não justifique a busca pela tão aguardada fantasia erótica interespécies. O melhor de Dagon é o tom de despedida que o Gordon assume, principalmente por encerrar seu filme com uma frase de Lovecraft que mais parece uma provocação: “Nós mergulharemos através de abismos negros… e naquele covil das Profundezas nós iremos morar em meio a maravilha e teremos glória para sempre”. Quase como se Gordon apontasse depois de todos aqueles anos que, no fim das contas, as brechas da obra de Lovecraft e o que sabemos sobre sua vida pessoal, que envolvia nojo da anatomia humana e um complexo de édipo mal resolvido, revelam um homem que encontrava seu prazer nas mais inimagináveis fantasias proporcionadas pelos mistérios do horror, não importa quão profundas e obscuras elas sejam. Finalmente, um prazer em que Gordon e Lovecraft podem se identificar.