CineBH: Cocote (Nelson Carlo de Los Santos Arias, 2017)

cocote

Que seja visto

 Por Felipe Leal

“El nombre poderoso de Jesús”

 

Em Cocote (2017), plano após plano, a acumulação de algo que pode vir a ser decisivo em demasia, só podendo a paixão explicá-lo: filmes podem ser revoluções, e se está diante de uma. Não chaves, ideias experimentadas, maquinários ou estampas de um processo revolucionário que seja, mas estruturas sintáticas e fechadas, concentradas e transbordando de um estilo (um modo de ser, raison d’être) cuja existência mesma, sua exibição, seu contato com os olhos, é capaz de fazer rachar o presente do que se sabia, do como havia sido feito previamente, das possibilidades de arriscar que ainda podemos estipular, empurrando mais as bordas… do real? Estamos diante da prova de que não foi suficiente nosso faro investigativo, endiabrado, para atravessar espaços com microscopias, como relances. É um choque. Pode-se sair da sala escura com um gosto inversamente proporcional ao fim do palato, daqueles tão minúsculos e fugidios que a fome para replicá-lo e estar à espreita por novos é quase uma possessão, uma necessidade. Aqueles cento e seis minutos podiam ser uma vida, na verdade contém algumas num estado limítrofe de selvageria: há um mundo, um em que o governo dos sujeitos é lançado às feras e os homens se veem atravessados por rasteiros poderes; diante deste mundo, simples, é preciso reagir.

Essa é talvez a história de Alberto, um homem enlaçado aos quatro membros por cavalos de desespero, vingança, passagem e poder. Seu pai morre pelas mãos de um homem influente e seus familiares – irmãs – causam-lhe problemas de incongruência religiosa, crença e querela pessoal. Estar no mundo sendo homem, melhor dizendo. Porque uma coisa é o seu luto, o de um homem convertido ao evangelismo, uma outra são os urros de libertação espiritual e os rituais afro-antilhanos que as irmãs e locais promovem em nome do morto. Mas este deve ser vingado para seguir em paz – ou eles, também, não terão paz. Não falta muito para que os cavalos se enfureçam e galopem. Ele será reduzido a nada? Alberto precisa reagir. Então o leitor deve saber duas coisas de antemão, a) que este texto é um bastante passional em relação a Cocote, ou ainda uma defesa, caso assim se prefira, e b) que por assim sê-lo, tomará algumas licenças formais para ser justo a tal sentimento, sendo a explicitação deste diálogo uma delas.

Uma teoria: o olho humano segue em cansaço de espírito (de humor?, de inspiração?) o número de imagens cumulativas com que entra em contato na trajetória de sua duração? Adultos são menos impressionáveis, menos inclinados à surpresa e ao desejo iconoclasta por conta da repetência das ações, do trabalho, dos anos? Porque, num gozo absoluto de coerência e articulação, todas as imagens de Cocote, dizemos todos os seus quadros, alguns inclusive em graus impossível e inconcebivelmente sublimes, só podem ser aproximadas não de planos, mas de proposições visuais com magnitudes de revirar um campo em 360º. Do primeiro serpentear, num preto e branco atemporal, de uma cobra de fumaça em 16mm, uma colisão fértil e quase ao rosto de uma palpabilidade neorrealista e boca de lixo, até suas últimas imagens, que são um retorno ao império de palmeiras, ladrilhos e sol à beira da apolínea piscina, um tableau de profundidade de campo tamanha que só pode remeter aos primeiros cinemas – juntas, em todas as linhas e corpos que relançam numa chicotada incendiária de mise-en-scène, estas imagens só podem ser comparadas, em recepção, em proposta de uma luz que vai incidir para logo depois nos devolver ao escuro, comparadas somente à intensificação dos nervos receptivos de um recém-nascido para quem tudo é a primeira vez. É assim que se o sente.

Mas este é definitivamente um mundo de adultos. Adultos são aqueles a quem é necessário comportar, carregar e lidar com significados estabelecidos; fazer. Sua idade anterior os cria, mais ou menos livre. Às crianças é reservado peculiar espaço em tela. Uma única cena pode resumi-lo bem e já ofertar a visão de algumas linhas da rachadura: Alberto parece cochilar em sua cama. A superfície da parede simples é de um azul simulado, quase claro. Uma conversa infiltra a janela e parece convergir no centro de suas sobrancelhas; talvez ele não durma. Palavras da morte do patriarca que correm para Cesarín, sobrinho, e se transformam em gritos e passos estridentes, e o garoto entra como um zumbido escuro ao quarto. A câmera, que do corpo de Alberto promovia um giro completo pelo recinto, pacienta em mostrar, des-cre-ver as imagens de santas, velas, contornar os tons de azul que se misturam à luz, e logo quando a porta é captada, entram em sincronia som de uma realidade externa e “realidade”, a do visível-filmado, o movimento do fora converge e à sombra veloz do garoto se segue Karina, irmã, armada de gritos e um chinelo. A criança é impossível. Mas, esperem, antes ainda que o círculo se feche, saem Alberto e Cesarín. Não somos permitidos a ver o último. O giro foi uma armadilha. É menos uma fobia que um jogo de encenação simultâneo a seu desdobrar narrativo. Numa outra cena com a outra irmã, à beira de um riacho, os infantes ressurgem, felizes, mas nunca devem perturbar aquilo que já está perturbado. Esta irmã também grita, ela contesta e gesticula, assim como a outra, a realidade, aquela em que o Deus dele não serve para nada, mas menos que isso: “seu Deus é o Diabo”. E(maiúscula divina)le não está no meu coração, eu que também sinto dor e não sou hipócrita como são seus servos, como o é você? Então Alberto reza, mas não sente, e ainda não fez nada.

Dizer que também é próprio das tomadas dessa cena a formação de um dispositivo interno que amplie, desafie ou suplemente a interação pressurizada do contado, é talvez assumir que todas as outras não encabeçam uma retomada de fôlego nesse vigor impetuoso de fazer ver sempre diferente. E aquele que vê elenca e se deixa atravessar por suas “favoritas” – não esqueçamos, filmes são sobretudo e ainda um quesito de gosto. Mas há duas coisas, dois eventos de ecceidade, que seu diretor filma de modo a tornar hiper-presentes, mais que próximos, um sendo uma entidade natural, o outro as manifestações físicas do espiritual na matéria. São: o mar e a dualidade do sincretismo religioso latino-americano. Para os teoristas do vermelho como sendo o pigmento que mais causa linhas de força e desejo com o olho, Nelson Carlo de Los Santos Arias faz do azul caribenho uma mémoire involontaire extensa: é ora imprensado por blocos de sombra e parece a própria água de um paraíso ainda não visto, ora traz consigo a fragilidade de um postal perdido, de um documento de outrora cujo reencontro anos depois aciona mais do que o corpo pode sustentar. É quase um documentário momentâneo sobre o azul: nós o queremos, queremos dele tudo saber, viver com algo que possa dele sobrar.

Atenção: um nome completo foi mencionado. Nelson Carlo de Los Santos Arias. Ele não pode ser esquecido, tampouco sua completude, a maneira que vem, sua apresentação. Dos fatos, é o menos perceptível (porque um dos menos controlados?, ele simplesmente é?) e o mais “atestável”. O leitor, se de olhos e ouvidos cicatrizados pela américa-latinidade de sua América Latina, conhece seus Silvas e Santos – metonimicamente falando, talvez tão bem quanto conhece o populismo e o sofrimento. Eles cruzam os territórios quase inteiros e levantam sua poeira de invisibilidade maculada. Sofrimento: é isto que o nome próprio comporta? Porque sabemos que alguns não chegam mesmo às equações e dados que nos dão rosto e pertença dissimulada. Não se está sendo político, político é o ato de cobrir a política dos vivos com uma história única, a sobre a qual estamos falando o tempo inteiro, de uma família destroçada pela miséria que é o desgoverno cataclísmico. E, no entanto, não há nada de “pobre” ali; no entanto, não é tão-somente a história de Alberto. Um nome como esse lançaria perspectivas, e um filme é para todos sem jamais, palavrão horrendo, “cosmetizar”. Esta câmera não o faria: o sofrimento não está adormecido nem implícito, está ali como a mãe está para Norman em Psicose: abertamente lá, o tempo inteiro lá, ainda que assuma outro corpo.

Um outro corpo e estamos de volta ao quadro, à célula que, de tanto se ler como parte de um todo, esquece-se que é também Citologia. A despeito do que é da ordem do dito em cada um deles – como se fosse possível separar verbo de imagem, mas faremos este esforço –, o que se faz com essas quatro arestas ainda não foi antevisto. Como inserir arestas num texto sem de seus interiores nada dizer, mesmo porque seria impossível fazê-lo sem beirar a convulsão literária? Alguns dirão que é tarefa de Sísifo, mas também greco-trágica, do crítico (ainda falamos do filme, porque aquele que filma é também aquele que arranja, um crítico). E a tarefa inicial do cineasta é transpor de sua tela “mental” uma ordem outra, a partir de uma primeira. Obras são transposições. Dizer “realidade” seria tolo, e não por todos os motivos teóricos possíveis: diz-se “ordem” porque são as ordens do corpo a que ele escolhe obedecer, e justo quando evitávamos os vocábulos da teoria eles ressurgem. Lateja algo de Titicut Follies (Wiseman, em 67), de um tronco observacional e resguardado do braço documental, naquele fluxo cênico que inevitavelmente saberemos ser de atores. É decerto passível de interminável discussão o recorte e a organicidade do mundo físico no documentário, mas, interceptado pela objetiva, há um novo e inumano elemento ao qual reagir, e o corpo muda, adapta, transforma. Chegamos a uma suposição mais rochosa: àquelas figuras que berram, xingam e entram em transes de expurgo, houve algo de pedido e algo de regência. Algo se afeta de certo modo e (coisas separadas, separáveis) convergiu para o quadro de ainda um outro.

Falávamos de algo que é “mais que próximo”, quando do mar e dos rituais. O que é isto que representa uma sobrecarga espacial? Só agora podemos elaborá-lo: poderá pagar pela boca aquele que considerar Cocote obra de ficção, porque ela não é nem isto nem de seu outro gênero, talvez no máximo um travestimento, e dos dois lados. Algo que, de tão familiar, não pode ser interpretado, que de tão episódico, da ordem dos feitos, não pode se servir assim de documentos compilados. Um embuste, uma farsa, uma atrocidade divina fazer com que uma das irmãs, “somente” para expressar que também sofre, e muito, numa das nove rezas, como um sol, magnetize para em torno de si alguém que lhe esfregue o peito violento, que lhe segure a mão, outras várias num coletivo ressoante, místico, entoando as palavras de dor e cura, que seu próprio corpo se levante, trema, delire, recue e recaia com brusquidão, quase um veículo, um intervalo de entrega em que ele lhe seja destacável. E como sabemos, como chegamos a afirmar isso? Ora, alguém que estava o tempo inteiro olhando por nós. Um aparato, quando bem manuseado, torna-se prótese, estiramento o órgão. O que o órgão vê? Vê diferente, numa logística do chão e do movimento para a qual se sujeita ao evento, o protagonismo peculiarmente se transfere para a ação, sendo que esta já é aquela que foi iniciada: o filho pródigo a casa torna. Machete em mãos, ele vai fazer algo. Sob o efeito do poderoso nome de Jesus ou não, porque a insistência maníaca do culto evangélico praticamente nos convenceu, queremos acreditar para que a força sintática daquela pastora também nos atravesse e converta, um só nome capaz de libertar e extrair desse mundo toda a imundície – Machete firme num plano que é puro tronco decidido e sanguinolência aos dedos, como se ele fosse o produto da alternância louca dos dois cultos que lhe atravessam o espírito (paz) com um demônio desconhecido, ele vai…

Seria possível que também insistamos nas obras enquanto majoritárias questões de linguagem porque algumas delas deixam-nos exatamente numa vacuidade dos sentidos, numa impossibilidade de sobre aquilo (que aconteceu) algo dizer? Daí que os métodos, passagens, operações tenham de ser traduzíveis, codificáveis, que, por exemplo, isso que chamamos de exercícios devam ser gramaticalmente quase causas e consequências, o olhar sobre as histórias meros aproveitamentos, reduções ou aditivos pautados em origens? De todo modo, tudo o que foi dito até agora pode, recomenda-se, ser “jogado fora”. Cocote, ao menos tentamos defender, é precisamente a experiência cálida e revolucionária de dispensar palavras. E este texto devia ter sido uma carta. Ainda assim, se um pouco crítico também puder ser: pode-se dizer sem exagero que muitas coisas não existiam antes de Cocote.

Alguns filmes surgem prontos e seu decurso só os prontifica mais; outros vêm a ser, sendo. Pintura se desenrolando como um pergaminho de uma sociedade com que nossa ciência ainda não tinha estabelecido contato. Cada ligamento, cada cisão alimenta um mistério e estala mesmo depois do primeiro segundo do novo. Ela não cria sem germinar. É uma droga, ansiar pelo diferente, pelo intenso, e simultaneamente se saber cego ao que virá, querendo que venha e rompa a cegueira – esta a das coisas que não tinham sido vistas, pensadas daquela forma. Poucos se moveram durante a projeção, a não ser para rir da irmã que “viraria homem, se fosse necessário”, porque Alberto, até então, não fez nada. Ninguém saiu. Se, aparentemente, foi necessário dizê-lo, a você que lê, das estatísticas de movimento dentro da sala, é porque, semelhante ao que aconteceu dentro dela, dentro daquele mundo, o corpo é o único lugar possível ao sentimento. Portanto, de volta à carta: querido leitor, se o diálogo das sombras vizinhas interessou, foi apenas para confirmar que, exatamente como quem escreve ou como a criança que cora à descoberta íntima e por outros imediatamente compartilhada e violada, também os outros estavam excitados e imóveis, e assim permaneceram até que os olhares se entrecruzassem. Mas uma luz já estava acesa.

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