A vida do intervalo
Por Felipe Leal
Aviso: os dois últimos parágrafos do texto podem conter spoilers sobre a trama.
Breves palavras antes que se chegue à obra, que é A Mulher dos Cachorros (La mujer de los perros, 2015): “depois que uma história é contada”, comenta Anne Carson, poetisa/ensaísta canadense, “há alguns momentos de silêncio”. É uma reflexão, dizemos sem medo, sobre términos. O mesmo serve para o cinema: o que acontece quando um filme é contado? Ele termina. Seu prolongamento, talvez, não. A vida continua, decerto, e se o faz já manchada pelo suplementar, esse misto de reconhecimentos, despertares e desapontamentos, o cordão permitiu que algo fosse transmitido. Há, então, uma diferença só superficialmente simples entre antes e depois. Quão conscientes estamos nós e os fabricantes desse espaço chamado “durante”? Um mínimo!, se prontificariam em alertar muitos, como se o efeito de uma obra pudesse ser medido em quantidades. Teorias de espectatorialidade, especulação de malabares translúcidos que não param de se multiplicar nas mãos de quem deseja perguntar e se depara com intermináveis variáveis, as veredas de apreensão se bifurcam e bifurcam – e não chegamos a respostas. Afinal, não temos que. Carson, no entanto, propõe uma: [o que acontece quando uma história termina é que] “meus olhos estão às suas costas”.
O método é puro, simples em sua abertura ao complexo. Como a produtora, como suas ações, estamos diante “de uma maneira de tomar decisões e de viver”, palavras de Citarella. Três anos dispersos em finais de semana de filmagens. Os fabricantes: cinco mulheres, doze cachorros, um lema-protocolo lançado com doçura por uma das realizadoras, filha aos braços em comentário pré-sessão (ela não havia começado?!), posto que são duas no ferro da direção, também só superficialmente, e uma delas tomará a tela como a Mulher (aquela dos cães). Detenhamo-nos, então, sobre o título, ele já lança pares de olhos. A Mulher dos Cachorros. Ela pertence a eles? É uma identificação, um atrelamento, e, se sim, feito por quem? Eles lhe servem como complemento ou reflexo simbólico? Jamais. Ela está no meio deles ao ponto de devir-cadela? Nosso tatear aterrissa em preciosa mina. Porque o que temos com certeza é a passagem das estações para aquela que vive da terra, do “lixo” e contra a chuva; variações cromáticas de tamanha iridescência que o céu se destaca e parece composto em degraus de verdade; o decurso dos dias, que também podemos chamar de tempo, a foice e o cultivo que assolam a pele e o vivido, da cadela ao industrial… esse cotidiano é, enfim, um que se faz. Nada está dado, ainda que alguns se adiantem com impressionantes ferramentas.
Engana-se quem pensa estar diante de uma estilística puramente temporal, sendo tão subsequente quanto notória a apelidação “cinema de fluxo”. O arrastar é apenas um desdobramento, há dezenas de outros implodindo na tela, e o cansaço de alguns é mais ato-reflexo de um fora sistêmico do que de uma lógica interna. O cinema tem e não tem tudo a ver com a impaciência. Mas o tempo, se maior letra da equação, densifica-se em todos os corpos, precisa descer em respostas – tudo o que fazemos, ainda que engolindo certa futilidade feita transparente e pouco incômoda, não é contra ele? E em face da necessidade de respostas, que só a ponta da matéria vem confirmar serem mais ou menos automáticas, a Mulher é indubitavelmente um quase ininterrupto ponto de contato com os cães, sem no entanto deixar de ser humana, “bruta”. A perspectiva inicial, entre os cipós, troncos e galhos e a Mulher que caça, é a dos cachorros, e repentinamente, como se se entrelaçassem, também a do espírito. “Ele” assiste às suas costas de tempo sedimentado, “eles” farejam, a física motora ameaça ir à todas as direções ao mesmo tempo, há dezenas de possíveis fazeres face o objetivo, o desejo. Há uma verdade sobre estar á espreita: tudo pode acontecer, acontecendo.
Não comandamos cães. A domesticidade é, deles, apenas um aspecto. A selvageria, romantizada, não contempla um viver em eterno alerta. Por isso Citarella e Llinás não tratam de duplos. Nas zonas de contato, é o quesito das ações que batalha com o tempo. E como se encadeiam, há também um devir-cão se impregnando na montagem: em momento algum se sabe onde as ações iniciadas neste quadro vão culminar, nem muito menos o que se faz, porque o que se faz é composto. Não há respostas simples, mas, pior, porque essa incompletude desmontada e refeita cintila bem nas armadilhas, gambiarras e coletas, mas explode quanto aliada aos bichos: entre a morte enquanto acontecimento (morrendo, não “morrer”) e o lidar dos vivos, nesse intervalo astuciosamente trabalhado pela atriz e nos cachorros, não há jogo mais intricado que as fabricantes possam simular que não aquele das decisões quaisquer e aparências.
O cachorro abandonado morre, e nem Ela nem nós o sabemos ainda. Se suspeitamos, o deslize da lente ao lendário rosto da Mulher afasta tal acontecimento do centro. No último plano, o indiscernível volta a se instalar, só para que se possa rir de todo o desejo de ordem que é nossa civilização e que a Mulher escolhe estar à margem. Ela entende os médicos, divide da companhia de uma amiga(s), reconhece que rouba objetos, mas o mundo da mulher não é, não tem de ser, porque o cinema trata de possíveis, o das gorduras e ingestão de líquidos, o dos impostos, tampouco o do matrimônio. É algo muito além de uma questão moral. O último plano é um de infinito. Aquilo que pensávamos morto escolheu repousar. Talvez os cachorros o soubessem – nós não, não somos os “espectadores dos cachorros”. Uma possível tristeza, quer compartilhada com o vizinho ou não, se torna outra coisa. As mulheres criam uma situação-limite, o espectador se vê com uma resposta-assalto.
Mas ainda é preciso falar do rosto da Mulher (Verónica Llnás). Diversas vezes ele carrega uma interrogação cálida tão difícil de comportar quanto extasiada de partilhar. Queremos que dure. Em que ela pensa?, é também se perguntar por que os rostos de quase todos os homens pouco interessam, e por que se fez, se produziu, que o de quase todas as mulheres contivessem mistérios. Porque, de fato, contém? Já falamos de olhos antes. Mas estes guardam uma diferença, ela, também, montada, desfeita como os fios de um novelo cuja última repuxada revela o rosto não de uma ovelhinha, mas de um cão, e ele estira a língua. O par esverdeado da Mulher é todas as coisas que não compreendemos, mas que têm seu lugar. Ela não precisaria esboçar um semi-sorriso para criar tais linhas. Os olhos são anteriores à boca, e talvez aqueles signifiquem a placidez momentânea da não-ação. É nisso que ela difere dos cachorros. É também aí que, aos nossos [olhos], é a mais fiel e verdadeira das cadelas. Fiel ao mundo se fazendo, à redução do epitélio e da energia cinética ao gerúndio. Que este mesmo mundo possa tratá-la como aquém ou em paralelo com os cães é uma, aliás duas tristes outras histórias.