Por Kênia Freitas
Boa Sorte é composto por dois filmes formal e estruturalmente relacionados, mas muito distante entre si pelas imagens que os constituem. Em comum está a proposta de filmar os trabalhadores em minas em condições extremas e/ou adversas de trabalho. A primeira parte filma os homens que buscam cobre em uma mina estatal da Sérvia; a segunda filma mineiros piratas de ouro no Suriname.
Formalmente o documentário constrói um jogo de espelhos: começa com a apresentação musical na Sérvia e termina com outra no Suriname, entre os dois atos a maior parte do tempo é dedicada a um fazer documentário observativo das atividades de extração e do cotidiano dos trabalhadores. Uma observação paciente que busca a construção de registro do íntimo: nos dois trechos, o ápice sendo uma conversa coletiva entre os homens durante uma refeição que inclui o diretor e a câmera como participantes daquela intimidade.
Em cada um dos blocos essa observação é recortada por um dispositivo de encenação proposto pelo diretor: os trabalhadores entram em um ambiente isolado e devem encarar a câmera em silêncio por um determinado tempo. E nessa proposição o jogo de espelho entre os dois filmes começa a mostrar a sua fragilidade: o isolamento e o silêncio funcionam bem na primeira metade do filme (nada interfere na relação direta entre o espectador e aquele rosto em primeiro plano); na segunda parte porém, os sons ambientes invadem o dispositivo – saímos do confinamento isolado para um ambiente aberto, sem paredes, sem separação possível. Os mineiros do Suriname encaram a câmera, mas também reagem aos sons que atravessam a encenação – corrompendo a proposta do dispositivo.
Assim, ainda que o dispositivo seja o mesmo, são experiências distintas de relação com os trabalhadores e o seu ambiente. E, no geral, a sobreposição destas experiências não cria uma relação de contraposição que acrescenta novas camadas a recepção das imagens, que possibilite a criação de um terceiro filme que surja da relação direta dos dois existentes. Imageticamente a primeira parte é uma experiência de cinema bastante única com o jogo de escuridão e de luz da mina subterrânea e a sensação do confinamento incorporada de forma sensível a montagem do filme. Esta tradução fílmica da experiência dos trabalhadores na segunda parte é bem menos interessante. Se na primeira parte o documentário cria um repertório imagético belo e inventivo de imagens pouco ou jamais vistas, na segunda ele se depara com uma iconografia extensa e incontornável de imagens do século XX – a dos corpos de homens negros trabalhando na terra de forma precária. Diante desta iconografia, as imagens do filme se perdem de forma pouco propositiva diante de uma quase automática reprodução deste imaginário já desgastado.
Se a sobreposição dos dois filmes de Russel em si não se concretiza, A Floricultura de Rubem Desiere é um filme que se beneficia bastante de ser exibido na mesma mostra que Boa Sorte (os dois filmes fizeram parte da mostra competitiva de longa-metragem). Observando as obras em sequência há uma trajetória delineada das relações capitalistas de trabalho e das suas condições: em ordem observamos a transformação capitalista do trabalho insalubre (parte 1) em trabalho pirata (parte 2) e finalmente em trabalho ilegal organizado socialmente em uma rotina (A floricultura). O cobre e o ouro se desmaterializam e tornam-se bens simbólicos das notas de dinheiro e promissórias guardados em um banco europeu. E o trabalho bruto e físico da mineração torna-se um trabalho de espera, observação, frustração e estratégia de um roubo.
Assim o roubo a um banco belga executado por três jovens romenos é filmado como um ato trabalho, um processo – fora da tradição da contravenção como ato espetacular fílmico, ela torna-se ato do cotidiano, da repetição, da rotina. A observação documental de Russel dá lugar a uma encenação ficcional naturalista. E, embora grande parte do filme seja composta por diálogos entre os três personagens, não é uma dimensão da intimidade ou mesmo da subjetividade destes personagens que se instala. As conversas são mais um elemento sonoro, de assuntos triviais, que fazem o tempo passar, que marcam uma banalidade das relações.
Deliberadamente a subjetividade dos personagens ganha pouca dimensão no filme. Há dificuldade não de falar (as conversas são constantes), mas de comunicar pela fala. Há uma pista do não pertencimento romeno nômade na organização social europeia contemporânea – mais uma vez no rastro da desmaterialização capitalista em comparação ao Boa Sorte (onde ainda existem relações comunitárias sólidas tanto na Sérvia, quanto no Suriname). Desmaterialização que se reflete como um todo no fazer do filme, se em Boa Sorte estamos diante de imagens densas e formalmente hiper estruturadas, em seus melhores momentos A Floricultura consegue levar o espectador a uma experiência de rarefação e vazio da encenação e da narrativa refletindo o lugar no mundo incerto de seus trabalhadores ladrões.