Por Pedro Tavares
“Você não precisa procurar por novas imagens, imagens jamais vistas, você deve utilizar as já existentes de uma forma que elas se tornem novas.” (Harun Farocki)
Retomar, remontar ou resignificar materiais existentes independente de concessão estão na filmografia de nomes como Esther Schub, Dziga Vertov, Alain Resnais, Orson Welles, Rogério Sganzerla, Andrea Tonacci, Chris Marker e Jonas Mekas que com suas devidas motivações remeteram e provocaram entre ética e a estética. James Benning fez de seu Easy Rider (2012) a revelação de um sonho perdido sobre seu tradicional arquétipo de observação sem que suas imagens sejam necessariamente novas, ainda que nenhum plano do filme original de 1969 seja projetado. É necessário, portanto, traçar a rota do encontro entre Hopper e Benning através deste imaginário de cinema e política.
À procura pela América
Pelas estradas americanas, na representação de uma parcela significativa da identidade do país – as highways -, Easy Rider (Dennis Hopper, 1969) procura a América perdida, o mito e o norte existencial em tempos de Guerra do Vietnã. De maneira geral, Easy Rider rompe com a era de filmes cômicos hollywoodianos e oferece à contracultura seu apogeu cinematográfico fixado pelo pessimismo, pela música, locações e diálogos como o filme definitivo de uma geração.
E nele está um filme basicamente de elipses e insinuações, intencionado a criar um espaço que permite o diálogo com uma época e um estado de espírito em forma de aventura lisérgica em monocórdio, longe da estrutura do cinema clássico americano. O road movie que aspira os westerns – à época tão próximos no tempo de exploração de territórios – parte de uma asfixia generalizada – social, existencial e político como espelho de um mal estar que muitos estavam a lutar. E como pilar de tudo isso está o sonho de recomeço. Coube a Benning, anos mais tarde, identificar caminhos complementares à época da filmagem de Hopper. Em comum, ambos estão em estado de suspensão e cabe as palavras do antropólogo Marc Augé sobre este estado: “(…) O estado de suspensão designa uma forma de esquecimento na medida em que ‘ambiciona recuperar o presente cortando-o provisoriamente do passado e do futuro e, mais exatamente, esquecendo o futuro quando este se identifica com o regresso do passado'”.
O encontro
Como parte da geração marcada por Hopper, James Benning é um cineasta/videomaker que transita entre cinema e museus com propriedade. Seus filmes seguem características únicas de caráter observacional. E o encontro sobrenatural de Benning com Hopper pelas estradas dos EUA se dá pelo mesma convenção: um filme sensorial, de sugestões e que recria Easy Rider a partir dos tradicionais longos e estáticos planos, aqui em paralelo em alguns momentos com diálogos do filme original como forma de guia narrativo, sem que o filme original seja remontado por Benning e sim uma releitura ao seu estilo característico de contemplar, criar atmosferas e narrar histórias.
Benning, que outrora tinha refeito Faces de John Cassavetes com os mesmos espectros, em entrevista ao Lola Journal afirma que seu respeito pelo filme de Hopper diminuiu conforme o tempo. Hoje, o diretor considera o filme “Cristão, capitalista e que afirma o manifesto de Malcolm-X que o uso de drogas é anti-revolucionário”. Sua reencarnação é feita pelas paisagens de Hopper, hoje muitas deterioradas ou completamente modificadas pelo tempo ou pelo homem. E Easy Rider, ambos, se resumem à busca de um espaço, de um local não definido.
A outra América
Restaurar ou constatar o passado? A questão que permeia a versão de James Benning o isenta de uma resposta concreta quando seu trabalho de aproximação e posse é explícita ao exibir, por exemplo, o cemitério da cena mais lisérgica da versão original em estado deplorável, ao trocar Born to be Wild do Steppenwolf por uma canção pop ou exibir a placa de “Não há vagas”, num simples gesto interpretativo, de criar novas camadas e significados, como a construção de um novo córrego para as cenas escoarem após o corte. A visão de Benning, neste ponto, é dicotômica entre passado e futuro.
A América filmada por Benning passou por outras guerras, ataques terroristas, novos tipos de drogas sintéticas e fenômenos pop, mas há de se considerar o lampejo de Hopper simbolizado na última sequência do filme original. O encontro se dará a partir desta cena – o encontro de um pensamento, ainda que rápido, de fuga, um lapso pessimista sobre o país dos sonhos. Está feito o diálogo ostensivo entre Hopper e Benning: alusões sobre um sonho – o início e o fim. A morte nos campos da liberdade, do vento no rosto e felicidade plena é escarrado em cada plano da observação de James Benning. “Não há vagas” é o canto nada subjetivo da cultura pop, um lamento à transgressão que outrora cantava selvageria, lisergia e revolução. Em troca estão os sussurros em forma de diálogos originais em volume mais baixo em pompa decrescente, como se o silêncio fosse o ponto final da geração e o ponto inicial de Benning, que entrega suas intenções ao dispositivo, permitindo que os longos planos falem por si. Uma infeliz coreografia social (e artística).
O modelo de Dennis Hopper que supõe o processo de integração e desenvolvimento por trás da carcaça de um filme de motoqueiros segue a retórica da heroicização de uma geração. Nele, homens (quase anônimos que seguem mais tipos que a ilusão da construção de personagem) ressoam às questões sociais daquele tempo como forma de análise urgente transpassadas em ações e falas duvidosas. O modelo de Benning, longe de uma comparação, apesar da releitura, é de um protoluto, silencioso, de análise partilhada com o espectador; o diagnóstico suspende a economia vista durante todo filme – ainda que não se chegue a respostas como em boa parte de discussões sobre o cinema, é possível dizer que o trabalho de Benning é um complemento com a permissão que o tempo cedeu, com a clara constatação que a América não foi e nunca será àquela almejada e que o homem que derruba motos também derrubará a economia e o ambiente em que vive.