Por Gustavo Menezes
Uma caminhonete encosta num barzinho de beira-de-estrada. Desce um homem de chapéu e paletó, que caminha calmamente sob uma chuva torrencial, e para à porta do recinto. Examina o ambiente, retira o chapéu, caminha até uma mesa ocupada por um homem, lhe acende o cigarro e pede para sentar. O que chegou puxa conversa, diz que quer comprar uma arma e sabe que o homem tem pra vender. Depois de certa resistência, o da mesa lhe cede o próprio revólver para um test-drive. O sujeito mira numa garrafa na janela, erra de propósito, e se justifica dizendo que “as raias dessa bicha ‘tão tortas”. Aponta a arma para o vendedor ver de perto. Então, em primeiro plano e sem cortes, vê-se o disparo e o buraco da bala se abrindo no meio da testa do homem[1].
O parágrafo acima é uma descrição resumida dos primeiros minutos de Tocaia no Asfalto, a obra-prima de Roberto Pires. A cena é construída com precisão cirúrgica, dando tempo para que se perceba a calma do assassino ainda quando cochila dentro do veículo, no seu caminhar sob a chuva e na abordagem da vítima; e que, à medida em que surgem indícios de suas razões de estar ali, o suspense cresça devagar. Termina com um choque – o tal tiro, sem cortes -, seguido dos créditos de abertura, apresentados em planos estáticos da cena.
Como explica Orlando Senna, que foi assistente de direção, o efeito do tiro só foi possível graças a uma gambiarra complexa com barbantes e uma testa postiça. Essa inventividade foi, sem dúvida, a principal característica do diretor durante toda a sua carreira, que, juntamente com seu fascínio pelos aspectos técnicos do cinema, o levava a realizar efeitos especiais e truques de câmera complicados usando poucos recursos; a construir gruas de madeira, cenários e objetos de cena com material reciclado, e até mesmo a fabricar lentes de câmera. Aliás, pode-se dizer que foi uma lente que o motivou a dirigir seu primeiro longa.
Em 1957, com 22 anos e já tendo realizado alguns curtas de forma amadorística, Roberto Pires viu O Manto Sagrado. Impressionado com o formato CinemaScope, inaugurado naquele filme, o jovem construiu a própria lente anamórfica na ótica do pai em Salvador, e escreveu um roteiro de longa-metragem a ser feito no formato. As filmagens começaram no mesmo ano, mas o filme só foi lançado dois anos depois. Redenção foi o primeiro longa-metragem baiano e o primeiro filme brasileiro no formato anamórfico.
Redenção tem a trama de um thriller clássico: um serial killer fugido, um assassinato misterioso, uma maleta com conteúdo não revelado, suspense; tudo ressaltado pela fotografia carregada de chiaroscuro – responsável por uma impressionante sequência onírica (frame acima) – e pela condução minuciosa da trama. Também são notáveis as experimentações com a câmera e a montagem, numa clara tentativa de emulação da linguagem hollywoodiana, especialmente nas passagens de tempo.
Apesar do roteiro assumidamente frágil, o longa impressionou o público e os entusiastas de cinema. O cuidado técnico e a inventividade de Pires, somados ao rigor da fotografia de Hélio Silva (do clássico Rio, 40 Graus) mostraram que era possível fazer cinema na Bahia e desencadearam o chamado Ciclo Baiano. Dois anos depois, Pires dirigia seu segundo longa, A Grande Feira.
Integrante da primeira fase do Cinema Novo, este filme tem, antes de tudo, uma preocupação em retratar com realismo o quadro social da Bahia. Não por acaso, seu produtor executivo é Glauber Rocha. No entanto, como Redenção já deixara evidente, Roberto Pires é um devoto das convenções do cinema de gênero e a favor da arte para o entretenimento. É, a princípio, oposto à proposta cinemanovista: “Uma característica essencial do Cinema Novo é que o autor se coloca contra os espectadores; as ideias do autor e as ideias dos espectadores são em geral diametralmente opostas; (…) o encontro autor-espectadores é um conflito: essa é a forma de diálogo proposta pelo cineasta.”[2]
Não à toa, Glauber diria, em Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, que Pires “ressente-se de profundidade ideológica” e “ainda é fascinado pela câmera. Vive o mito do quadro e do corte(…)”[3] De fato, ainda que se critique a simplificação da trama no filme em questão, é claro o cuidado de Pires com a construção visual da narrativa. Tome-se como exemplo a cena em que Rony converte a navalha que lhe ameaça em instrumento de humilhação de Maria. Ou então o clímax, quando Chico Diabo vai – sozinho, em espaço vazio – colocar a banana de dinamite nos tanques e Rony e Maria correm para impedi-lo – ambos imersos em planos de conjunto do cotidiano da Feira -; e a montagem paralela faz acentuar o suspense.
Depois de Tocaia no Asfalto, Roberto Pires se muda para o Rio de Janeiro e realiza dois filmes policiais: Crime no Sacopã, hoje perdido, e Máscara da Traição.
Sem dúvidas, este é seu filme com mais potencial comercial. É fácil notar pelo elenco, estrelado pelos galãs de TV Tarcísio Meira, Glória Menezes e Cláudio Marzo, como também pela abertura, feita em animação carregada de desenhos estilo “pop” e música à 007, e a própria história – clichê do thriller policial – sobre um assalto à tesouraria do Maracanã. Por outro lado, é neste filme que Pires consegue expressar mais diretamente sua visão artística.
César, o protagonista, é um contador profissional e artista plástico amador. Em uma das primeiras cenas, ele e Cristina se encontram numa galeria que está expondo pinturas de arte moderna. Vendo os quadros, César diz: “a minha visão estética é diferente disso daí”, “[faço] gravuras pra não enlouquecer. E é uma boa razão.” E, apontando uma das obras, completa: “Agora olha pra isso. Que razão um cara tem pra pintar um troço desse?”
É Pires se colocando diante do cinema moderno. Como cineasta dedicado à linguagem clássica e ao cinema “de ilusão”, ele questiona a busca de seus colegas por novas formas de expressão. O posicionamento fica mais claro na sequência dos preparativos para o assalto. César decide se passar por seu chefe, construindo artesanalmente uma máscara com a ajuda de um manual de maquiagem intitulado Star makeup. São mais dois traços de identificação entre o diretor e o personagem: o trabalho artístico feito de modo artesanal e a inspiração na forma de fazer estrangeira.
Máscara, convém notar, foi produzido pela Mapa Filmes; produtora originalmente ligada ao Cinema Novo que, por necessidade econômica, no fim dos anos 60 investiu em filmes coloridos de mais apelo popular.
No ano seguinte lançou Em Busca do Su$exo, fita que também anda perdida. Seus dois longas seguintes, considerados filmes menores, tiveram em comum a preocupação com o meio-ambiente. O primeiro deles, a ficção científica Abrigo Nuclear, é tão incomum que, até hoje, muitos o tomam como o primeiro exemplar do gênero no cinema nacional.
Ainda que não seja verdadeira[4], a afirmação comprova o caráter inusitado do projeto. Dispondo de poucos recursos, era loucura realizar um filme que exigisse cenários, figurinos e efeitos mirabolantes. Mas Roberto Pires resolveu o dilema com material reciclado: garrafas, tampilhas, peças de televisores e lixo industrial de todo tipo. Nada mais oportuno, já que o filme se passa justamente num futuro pós-apocalíptico em que o uso desenfreado da energia nuclear tornou a superfície do planeta completamente inabitável, e os humanos relegados a um abrigo subterrâneo.
Vale mencionar que o protagonista do filme é vivido pelo próprio Pires, pela primeira vez em sua obra. Pode-se notar uma identificação entre o idealismo do personagem e do criador. Colocando-se na contramão do pensamento vigente – seja da sociedade totalitária do abrigo subterrâneo, seja da classe cinematográfica consagrada -, os dois se mantêm fieis a seus princípios.
Seu último longa foi Césio 137 – O Pesadelo de Goiânia, baseado no acidente ocorrido em 1987. O maior trunfo do filme é que, como o fim da história é de conhecimento público, acompanhar o desenrolar da trama torna-se angustiante – e Pires se utiliza disso. Ele também sabe, e coloca no filme, que o caso é uma prova das eternas mazelas brasileiras – especificamente a ignorância, a miséria e o descaso do poder público.
Revista a obra de Roberto Pires, além do encanto por seu esmero como cineasta, fica o espanto pelo contraste entre seu empenho para realizar filmes de apelo popular e o ostracismo generalizado com relação a seu nome e seu trabalho. E o pior é saber que ele não é um caso isolado, mas apenas mais um de tantos cineastas brasileiros ignorados. Sem dúvida, Pires é um cineasta que merecia ser mais conhecido, divulgado e apreciado.
[1] Sergio Leone seria louvado, dois anos depois, por fazer o mesmo em Por um Punhado de Dólares, violando a regra hollywoodiana de jamais mostrar um tiro e sua vítima no mesmo plano. Era obrigatório o corte no momento do disparo.
[2] BERNARDET, 2009, p. 223
[3] ROCHA, 2003, p. 158
[4] Mesmo rara no Brasil, a sci-fi já havia sido explorada em nosso cinema pelo menos desde os anos 50. Há exemplares na chanchada, como Os Cosmonautas, de Victor Lima, no cinema marginal, como Jardim das Espumas, de Luiz Rosemberg Filho, e mesmo na filmografia de cinemanovistas, como Brasil Ano 2000, de Walter Lima Jr. e Quem é Beta?, de Nelson Pereira dos Santos.