Um Amor a Cada Esquina (Peter Bogdanovich, 2015)

Por Virgilio Souza

Em mais de uma ocasião ao longo de suas cinco décadas de carreira, Peter Bogdanovich relatou com entusiasmo a atitude de John Cassavetes durante uma exibição prévia de Essa Pequena é uma Parada/Whats Up, Doc?, antes mesmo que o filme se tornasse o sucesso estrondoso que o levou ao terceiro posto na relação de mais assistidos de 1972 nos Estados Unidos, atrás apenas de O Poderoso Chefão e O Destino de Poseidon. Segundo ele, o público parecia resistir à comédia, apesar de algumas risadas no início da projeção, quando o colega cineasta se levantou e, se dirigindo à plateia, gritou “O que é isso? Eu não acredito que ele [Bogdanovich] está fazendo isso!”.

Naquele momento, Cassavetes reagia a um filme que, como a carreira de seu diretor, se voltava diretamente ao cinema dos anos 30 e 40 e às mais farsescas peças on e off-Broadway. Mais de quatro décadas depois, é possível apostar que seria similar sua reação a Shes Funny That Way — um novo exercício de retorno, um movimento que pode até ser visto com certa frequência, entre pouco inspiradas comédias de elenco hollywodianas e formulaicas produções francesas que figuram em festivais como o Varilux, mas não com equiparável domínio do que está em tela.

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É verdade que a carreira de Bogdanovich possui alguns exemplares aparente e felizmente deslocados no tempo — Amor, Eterno Amor, Muito Riso e Muita Alegria e No Mundo do Cinema, entre outros —, os quais dariam ares de verdade à anedota, mas não apenas a distância temporal me leva a crer que este filme, lançado em 2015, talvez seja o símbolo mais claro dessa tendência igualmente autoral e referencial. Parece concreta a crença do realizador na risada como maior recompensa possível ao público, uma lógica que, no bom teatro de farsa, tem origem na ideia de que o riso é o único recurso possível em tempos difíceis, um escape para uma realidade antes inescapável. Não surpreende, portanto, que o cineasta abra seu mais novo longa rejeitando ser um “cínico, ofendido pela mais leve insinuação de fantasia” e afirmando acreditar que “os fatos nunca devem atrapalhar uma boa história”.

Consciente de seu destino e de todo o arco a percorrer, o filme investe em dinâmicas interessantes para levar a trama adiante. Os personagens entram livremente nas vidas uns dos outros, tanto dentro quanto fora de quadro, tendo a peça a ser ensaiada como palco para que determinadas interações se desenvolvam. Os trechos no consultório psiquiátrico ocupado por Jennifer Aniston e frequentado por parte do elenco parecem ser os mais irregulares, ao lado da subtrama de perseguição à protagonista vivida por Imogen Poots. De todo modo, é preciso elogiar a capacidade que Shes Funny That Way possui de manter teatro e cinema como elementos constantes, como espelhos que refletem os eventos fora de cena — os exemplos mais claros disto sendo o teste que dá a vaga na produção à garota, antes acompanhante profissional, e a entrevista a uma repórter, quatro anos depois, que dita todo o relato dos acontecimentos.

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Precedida por uma série de referências, que culmina nas aparições de Quentin Tarantino e do próprio Bogdanovich, a sequência final — retirada de O Pecado de Cluny Brown, de Ernst Lubitsch — reafirma o proximidade do filme com um momento passado da história do cinema, a um só tempo uma nostalgia pelas obras memoráveis e um gesto de homenagem às coisas geralmente esquecidas. O mais importante, porém, é a habilidade do autor em fazer humor e reverência não apenas pela atmosfera construída ou por menções pontuais bem escancaradas (categoria em que Tarantino parece ter se especializado, diga-se). Há um enorme repertório a serviço da narrativa, que definitivamente incorpora marcas de gente como Keaton, Hawks e Sturges e alinha pequenos momentos de comédia visual, muito próprios do slapstick, a aspectos emprestados da comédia screwball, como a histeria coletiva e a excentricidade do texto.

Nesta conjunção de fatores que isola Shes Funny That Way de seus colegas de gênero recentes se encontra até mesmo a condição de Owen Wilson como principal figura masculina, que guarda reflexos na própria origem do ator como roteirista parceiro de Wes Anderson, com ênfase em gags verbais e jogos de palavras de toda sorte, conservando, porém, um traço de ingenuidade já explorado anteriormente por outros autores, Woody Allen o mais óbvio deles. Desde o início se reconhece que o personagem não é um tipo como Marlon Brando, Cary Grant ou James Dean, mas um sujeito mais próximo da imagem de John Ritter, outro símbolo da postura descontraída das comédias de Bogdanovich.

Seu romance com a protagonista também se desenvolve de modo nostálgico, doce, talvez até um pouco antiquado, mas sempre coerente com a proposta geral do filme de se inserir em um universo um tanto fantasioso. É natural que a garota se defina como musa, e não acompanhante. Nada mais adequado em uma Nova York que não existe precisamente como cartão-postal, mas como memória de um tempo do cinema em que de fato se filmava lá, sem autorização oficial e com Hepburns e Gazzaras se aventurando pelas ruas.

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