Por Virgilio Souza
Milagros Mumenthaler venceu o Leopardo de Ouro do Festival de Locarno com seu primeiro longa-metragem, Abrir Portas e Janelas (Abrir Puertas y Ventanas, 2011). Oito anos antes, havia realizado um curta, O Quintal (El Patio, 2004), de enorme proximidade com esse premiado trabalho. Não se trata, aqui, de apontar marcas próprias e muito concretas da cineasta, ainda jovem e cuja obra é não apenas breve como também restrita tematicamente, o que talvez até justifique a repetição de determinados traços. A continuidade pode ser tanto uma imposição da limitação do universo explorado quanto uma vontade narrativa consciente da realizadora — ou, naquela que parece a opção mais acertada, um pouco das duas coisas. A ideia é partir de um trabalho anterior para enxergar reflexos em outro, já bastante amadurecido, e vice-versa, buscando suas inspirações mais primárias. Serão abordadas quatro esferas principais: o isolamento, o espaço, o poder e a sexualidade.
Para além da semelhança em termos de trama — O Quintal observa duas irmãs fechadas em uma casa; Abrir Portas e Janelas acompanha três, um pouco mais velhas, sob as mesmas circunstâncias —, os filmes dedicam atenção especial a essa ideia de retiro em um local muito bem definido. Em ambos, os créditos iniciais dão lugar, de imediato, a interferências pontuais do mundo externo. No curta, o telefone toca enquanto Martina está deitada, resistindo a despertar; no longa, o som da campainha (também presente e muito marcante em um momento específico do curta) anuncia a chegada do (ex-)namorado de Marina, de quem ela foge.
A resistência em atender aos chamados de fora é indicativa da tônica que se seguirá nos dois casos: as jovens lutam para manter esse isolamento erguido em torno da casa e do que ela representa. As razões para tanto variam da preguiça de ir à escola a uma espécie de inércia para ir ao centro da cidade, como se o longa fosse uma continuação natural do curta não apenas para a cineasta, mas para as figuras em tela. Quando não é apenas válvula de escape, como o caso da televisão constantemente ligada em ambos, ou recurso para rupturas ainda maiores, como a ligação que termina um namoro, essa invasão externa à vontade se torna uma perturbação inevitável e só é atenuada por soluções que mantém certa reclusão — o uso de um guarda-sol e um banho de chuveiro no quintal ou um copo d’água e o deslocamento de um ventilador para aliviar o calor. As personagens se prendem a esse muro erguido por falta de opção ou vontade, e somente o ultrapassam brevemente para logo retornar, em uma lógica de pertença.
Para que essa ideia tenha efeito, Mumenthaler se dedica a percorrer cuidadosamente os cômodos. Em uma mesma cena de O Quintal, a primeira em que se explora a casa das garotas, a câmera passeia por um corredor que, através de janelas e portas, fornece o reconhecimento espacial necessário e localiza o ambiente em que se dará a maior parte da ação — justamente os fundos do imóvel, o mais distante possível da rua. A atenção a essa geografia ajuda a construir personagens acuados, em especial Martina, que interrompe de forma abrupta suas conexões com o externo (a vizinha, o vizinho, a escola), por telefone ou em curtas trocas de palavras à porta, talvez por sentir a ausência da mãe, sobre quem pouco se sabe para além da ausência em si. No longa, o casarão em que as garotas vivem é herança da avó falecida e, não havendo menção objetiva aos pais, resta a sensação de que esse enclausuramento é algo muito mais consciente. Sofía, a irmã infernal, ativamente fecha cortinas, portas e janelas e escurece o ambiente para, no limite, impedir que o sol penetre pelas frestas para ver televisão, em uma ligação artificial e de distância segura do lado de fora. Nesse sentido, as portas e janelas do título são, muitas vezes, espaços de interação quase negativa, que buscam evitar o que está além, como o antigo namorado, não oferecer acessos.
O único fator de ruptura seria a presença de Francísco. A relação entre uma personagem e o rapaz da casa ao lado — que no curta era apenas insinuada, mas impossibilitada pela idade (“Ele é velho demais para você”, dizia a irmã) — se estabelece também por meio de vidraças e finalmente se concretiza. O que pode ser visto como a libertação de Marina, porém, demora a se realizar em função da presença de um elemento adicional, a namorada do rapaz, e ocorre dentro dos limites daquela cercania. Assim, mesmo suas aventuras mais distantes ocorrem dentro de espaços programados e que raro são vistos em campo (o carro dele, o local de trabalho, o jardim).
É dentro desse universo restrito e claustrofóbico por natureza que as personagens frequentemente entram em disputas de poder e autoridade. Outro objeto que ganha significado quando posto em análise nos dois filmes é o controle remoto: no curta, ele é representante máximo de uma autoridade juvenil, disputado inclusive fisicamente; no longa, o conflito é mais sutil e banal, talvez sinal de maturidade, mas não livre de uma tensão implícita que rodeia todo movimento.
Mantém-se no longa, por outro lado, uma briga descabida por espaço, um resquício de infantilidade que parte — principal, mas não exclusivamente — de Sofía. Ela é a principal fonte de distúrbio, a única capaz de arroubos maiores em uma relação marcada apenas por pequenas explosões — a primeira e última de Marina, por exemplo, ocorre na mesa de almoço, mas não é nem mesmo dirigida a um ser específico. Violeta (curiosamente, o nome de uma terceira irmã nunca vista no curta, outro indício da importância do extra-campo) existe entre as duas, nesse espaço entre o destempero e a apatia, mas não funciona necessariamente como um ponto de equilíbrio, muito embora apazigue os ânimos vez ou outra. Sua principal característica é uma inquietação contida da qual ela somente se livra ao partir e deixar as irmãs se engolirem, intensificando a tensão das rusgas anteriores (“[As roupas] não combinam com você” e “Eu não suporto você” é apenas um dos diálogos mais agressivos), que posteriormente se torna física. A falta de um terceiro vértice, no curta, se não elimina, ameniza o conflito.
As motivações para que ele exista, contudo, são similares e particulares deste universo essencialmente feminino, ainda que próprias de cada contexto. No fim das contas, a maior parte dos ataques se dá em direção à sexualização que permeia toda a narrativa. Em O Quintal, a irmã mais nova acusa a mais velha de “putita” e recebe como troco um nada sutil “Pelo menos eu não me toco” — firme, a tréplica vem: “Isso não é verdade”. Em Abrir Portas e Janelas, Marina diz que Sofía resolve seus problemas na universidade e consegue favores em troca de sexo ou da insinuação do sexo. A ideia parece ser de que nem mesmo o isolamento corrige ou atenua uma ótica tipicamente machista, nem mesmo em um universo ocupado quase que exclusivamente por mulheres.
O que varia são as preocupações das personagens sob este aspecto. As adolescentes do curta se fixam (e se provocam com relação) a fatores típicos da puberdade (pré e pós), tais como o crescimento dos seios e a primeira menstruação, mas a mais jovem ainda preserva enorme infantilização, tanto no porte quanto na personalidade, ao passo que Sofía já se interessa pelo vizinho e almeja algum distanciamento das fases mais precoces. No longa, as garotas também questionam o próprio corpo, porém sob uma ótica de insatisfação, mais que de estranhamento ou novidade — até mesmo quando uma dela fala de seus seios, a perspectiva é distinta, adulta. Em termos gerais, todavia, o incômodo de Sofía remete tanto a ciúme (ela namora uma aliança que encontra, as irmãs encontram seus pares) quanto ao fato de que uma delas não se parece com as demais (daí a insistência em afirmar que ela é adotada).
No que diz respeito à maneira como os dois filmes caminham rumo a suas resoluções, há marcas muito fortes do olhar da autora, por mais que as tramas exijam encerramentos bem diferentes. Em ambos, a reclusão parece ter caráter imutável, variando apenas as dinâmicas sob as quais ela se estabelece. Há briga e reconciliação, temor e alívio, e brechas são abertas ao que há de externo, mas as coisas sempre voltam à lógica original de isolamento — a mãe que chegará apenas para visitar as meninas; o rapaz que passa a fazer parte da casa em vez de tirar a garota de lá. A câmera que transita pelos cômodos e reenquadra a ação para produzir mudança volta a repousar para indicar uma permanência essencial e, nesse sentido, a forma como Mumenthaler trabalha o plano final de cada um deles é bastante reveladora: de um lado, as duas irmãs na saída entre a casa e o quintal; de outro, a sala de um casarão vazio e modificado, e seus habitantes do lado de fora, mas definitivamente prestes a retornar.
O curta-metragem foi disponibilizado legalmente no Vimeo.