Por Arthur Tuoto
O Desejo da Minha Alma é um filme bastante consciente dos seus limites. Mesmo se focando em uma história pesada – após um terremoto no Japão (que nos remete diretamente aos eventos de março de 2011), dois irmãos perdem os pais e ficam orfãos – o filme se concentra em uma abordagem que lança mão de relativamente poucos elementos, constrói sua narrativa a partir de um jogo muito minucioso e detalhista em uma dinâmica espacial de ausências e presenças implícitas. Muito disso reside na relação dos seus atores, em especial os protagonistas, a irmã de 12 anos e o irmão de 5, com a descoberta de novos ambientes ao seu redor, já que depois da tragédia e da perda dos pais, os dois se veem obrigados a morar com parentes próximos, em uma outra casa e ao que tudo indica, uma outra cidade.
Toda a dinâmica da direção de Masakazu Sugita funciona como um jogo de forças entre uma mise-en-scène rigorosa – que não deixa de remeter a uma tradição centenária no cinema japonês, com seus enquadramentos fixos e sua geometria de cena austera – e um drama que, ainda que narre essa história das mais melancólicas, tem alguns momentos de uma ternura muito espontânea. A inocência de Shota, o irmão mais novo, que ainda não tem exatamente uma noção concreta da morte dos pais, gera algumas das cenas mais doces nesse sentido, principalmente quando ele é colocado nesses novos arredores domésticos que precisam ser desbravados, nessas novas relações de afeto com os tios que aos poucos vão substituindo os pais e com todo a área física afetiva dessa nova casa. Justamente o oposto de Haruna, a irmã mais velha, que convive entre um misto de serenidade e resignação. E se em um primeiro momento podemos até cogitar que a irmã aceitou bem a morte dos pais, com o seu semblante constantemente pacífico (ela chega, inclusive, a soltar um sorriso ingênuo no enterro dos mesmos), aos poucos ela vai revelando uma raiva implícita, como se finalmente começasse a lidar com a morte, a externar essa incompreensão com a devida fisicalidade. Mesmo na cena em que Haruna ensaia um sorriso no espelho do banheiro, como que para tentar acobertar um semblante mais negativo, fica mais do que claro todo esse movimento corporal da personagem, essa anatomia infantil que funciona dentro de uma ambiguidade muito reveladora.
No ápice dramático do filme, e possivelmente em uma das melhores atuações infantis do cinema recente, Haruna desaba a chorar quando tenta contar para o irmão que os pais estão mortos, ou pelo menos tenta fazê-lo compreender isso de alguma forma. Um pouco como se, até ali, nem ela tivesse digerido exatamente essa ideia, o conceito dessa morte, como se essa sensação ainda estivesse em suspensão, aguardando apenas ser dita em voz alta para se fazer concreta, tanto para ela mesma, como para o espectador, que até ali estava intuindo tudo apenas por imagens e comentários contidos entre os familiares no começo do filme, nunca exatamente de uma forma explícita e direta.
Todo esse caminho muito gradual que o filme segue, que em algum sentido é o caminho da aceitação da morte, é muito bem mediado por uma série de elipses que intuem toda a minuciosidade daquele tempo, toda as especificidades daquelas ações e daqueles gestos. Ao mesmo tempo que alguns cortes são muito bruscos e fazem questão de jogar os personagens já dentro do plano e inseridos nessa simetria desoladora, a fruição dessa montagem funciona muito bem como um elemento de sublimação da morte, de um espectro que ronda essas crianças e faz com que a ausência elementar dos pais crie sempre uma relação de iminência com o tempo, uma espera que só reitera esse vazio maternal. Quando Shota pensa que os pais podem chegar de balsa, e ele e a irmã vão aguardar um barco que nunca chega, isso fica mais do que evidente.
O filme de estreia de Masakazu Sugita pode até não ter exatamente grandes pretensões, mas trabalha muito bem dentro de uma meticulosidade doméstica que a trama exige, em especial nesse universo infantil do trauma, nesse descortinar de um novo mundo após uma perda essencial. E apesar de ter um ou outro deslize (a trilha sonora, ainda que oportuna com seu piano pontual, às vezes abusa um pouco de uma lógica dramática pretensamente potencializadora) é o tipo de filme que eu sinto falta de assistir. Curto, conciso, equilibrado em seu proposta minimalista e que, ao se utilizar de princípios básicos do cinema, se aplica em alguns métodos não apenas funcionais, mas evidencia uma essência primária da cena, uma força dramática que parte de uma genuína singeleza formal para cumprir muito bem seus desígnios narrativos.