Por Fernando Mendonça
Era tão menino. Espantava-me pensar um século de vida, ouvir e ler das coisas que tanto fizera, que fundo marcara no espírito humano dos anos 1900. Sabia de tua importância, benfazeja posição numa arte que tanto me ajudou a entender-me este menino. Pois foi também através de ti que eu me entendi, Manoel, e que passei a melhor lidar com as imagens de minha formação, já neste outro século, bem depois do ano 2000, quando tardiamente (dizem as aparências) descobri tua luz. Mas a descoberta foi plena, dando-me a consciência de que nenhuma luz é tardia, de que não há atraso para os bons sentimentos e, assim, eu já não poderia imputar-me culpa de coisas que são maiores e estão mais alto do que posso alcançar. Disseste-me naquela primeira sessão que participei de um filme teu (Os Canibais), como se sussurrasse aos meus olhos diante daquela louca alegria de obra, que as coisas não seriam tão fáceis, em nenhum sentido: fosse para mergulhar em teu mundo oblíquo, fosse para dele sair na respiração de outros mundos e cinemas que já não me bastariam ou completariam pela superficialidade, fosse para me assumir como homem de um mundo que também não facilitava os teus caminhos, o teu olhar. Pois, ao mesmo tempo em que me diziam da necessidade em celebrar teu nome e teus muitos anos, roubavam de mim a chance de acessá-lo, de conhecê-lo como gostaria, assim, na intimidade de uma correspondência. Ver teus filmes sempre me exigiu garimpo, do lado de cá do oceano, e tantos me chegaram em qualidade duvidosa que ainda não sei se pude vê-los como de fato são. Talvez por isso ainda não tenha visto todos, nem mesmo muitos dos que cá existem, pois sinto que preciso sempre tocar em ti com alguma calma, alguma percepção distinta da que vivo cotidianamente, cinefilamente, para melhor esclarecer. Cada palavra tua nas sessões seguintes, cada piscadela partilhada ao término dos filmes que desde então apreciei, também me ajudou a situar esta qualidade de cinefilia não como um algo a parte, um impulso destacado da sociedade, dos que me cercam, pois tua lição foi me fazer partícipe direto da realidade. Deste-me a luz para que entendesse as sombras, deste-me o tempo para que vivesse o que há de mais concreto em meu corpo e nas relações que a partir dele posso estabelecer. E o maior de todos os aprendizados neste crescimento, nesta educação que até hoje insistes em me guiar, foi o de compreender que não preciso deixar a meninice para ser homem, pelo contrário, pois agora sei que devo manter o crédito do deslumbramento, da imensidão que pode haver nas cores de uma flor ou numa palavra bem dita. Teus ensinamentos me deram um melhor trato do verbo, ainda que dele me valendo, como aqui, não possa articular a total expressão do que gostaria de dizer-te. Melhor trato porque nele inclusa veio a consciência de que toda tentativa de fala se finaliza no silêncio, e que nisto está o mais efetivo registro da humanidade. Mais do que gastar meu dizer, em ti aprendo o calar, o valor da pausa, dos espaços em branco que permeiam a vida, a arte, o amor. Teu cinema é este justo espaço que me faz menino, Manoel, é o intervalo que une e separa aquele meu plano favorito dentre os que já vi teus, em Viagem ao Princípio do Mundo; aquele quadro, em que a mão de Marcello (tua mão, minha mão) tenta alcançar a flor no alto da árvore. Teu cinema é aquele abismo de poucos e eternos centímetros, aquela ausência cheia de sentido e esperança, que não mais desaparece ou conhece término. E se arrisco minha gratidão, entre tudo que de ti recebo, numa única sentença, ei-la: obrigado por morrer menino. É tua juventude que não me deixa chorar, dando-me o luto mais branco que já provei, prosseguindo tudo o que acompanhei de teus últimos anos, na felicidade do que realizava e não cansava de planejar para o futuro. Tua partida não encerra nada disso, eu sei. E sei que me incumbes, a mim e aos de minha geração, a continuar diminuindo o espaço entre a mão e a flor. O futuro ainda está em ti, Manoel, em teus filmes e tudo o que fizeste, em tudo o que ainda despertará no coração de tantos. Tranquiliza-te aí, como é teu hábito, pois de cá estamos seguindo teus passos, retraçando os caminhos que iluminaste para que encontrássemos os nossos. Minha palavra de apreço, meu sentimento de saudade, meu coração que é teu. Até breve.