Por Kênia Freitas
I
A forma em si, as convenções da narrativa em termos de como lidar com a subjetividade, o foco em alguém que está em desacordo como o aparato de poder da sociedade e cuja profunda experiência é a de deslocamento cultural, alienação e estranhamento. A maioria dos contos de ficção científica lidam com como o indivíduo irá lutar contra essa sociedade e circunstância de deslocamento e de alienação e isso praticamente resume a experiência massiva da população negra na pós-escravidão do século XX.
Greg Tate
As populações negras do continente americano são as descendentes diretas de alienígenas sequestrados, levados de uma cultura para outra. Os seus antepassados, separados dos seus territórios originais, foram abduzidos como escravos para o Novo Mundo. Na(s) América(s), passaram por um processo constante de apagamento das raízes – separados de parentes ou de pessoas da mesma comunidade, impossibilitados de falarem as próprias línguas, com os corpos encarcerados impedidos de seguirem as suas tradições culturais. Ao longo dos séculos, os descendentes dos aliens, já despossuídos da própria narrativa, foram incorporados como o órgão estranho dessa nova sociedade híbrida: contidos e rechaçados pelo corpo social – caçados e assassinados pela polícia e cerceados pelas grades de novas prisões.
A comparação do processo de diáspora da população africana para o continente americano com a construção de uma narrativa de ficção científica extraterrestre não deixa de ser brutal, potente e, ao mesmo tempo, curiosa – visto que tão poucos negros e negras protagonizam (como criadores e/ou personagens) o universo das fantasias futurísticas. Essa ideia é ponto a partir do qual Mark Dery cunha o termo afrofuturismo para tratar das criações artísticas que por meio da ficção científica inventam outros futuros para as populações negras atuais. Kudwo Eshun resume o techo que abre esse texto em uma frase: “A existência negra e a ficção científica são uma e a mesma”. Acessar ao universo narrativo das obras afroturistas é lidar concomitantemente com a sua dupla natureza: a da criação artística que une a discussão racial ao universo do sci-fi e a da própria experiência da população negra como uma ficção absurda do cotidiano. Se mais do que previsões ou premonições do futuro, as narrativas de ficção científicas são formas especulativas de pensar o presente, essa distinção é crucial para pensarmos Branco Sai Preto Fica como uma exploração afrofuturista do dia a dia da população negra brasileira.
II
A razão histórica para termos sido tão empobrecidos em termos de imagens futuras é porque, até muito recentemente, como uma população nós fomos sistematicamente proibidos de qualquer imagem do nosso passado. Eu não tenho ideia de onde, na África, meus antepassados negros vieram porque, quando eles chegavam ao mercado de escravos de Nova Orleans, os registros desse tipo de coisa eram sistematicamente destruídos. Se eles falassem a sua própria língua, eles apanhavam ou eram mortos. (…) Quando, de fato, nós dizemos que a história desse país foi fundado na escravidão, nós devemos lembrar que queremos dizer, especificamente, que ela foi fundado na destruição sistemática, consciente e massiva dos reminiscências culturais africanas. Que algum ritmo musical tenha perdurado, é bastante impressionante, quando você estuda os esforços da maquinaria branca de importação de escravos em eliminá-los.
Samuel R. Delany
Dimas Cravalanças é um viajante do tempo, vindo diretamente de 2073. A sua missão é a de coletar provas no passado sobre a ação repressiva da polícia no Baile Black do Quarentão, na Ceilândia, Distrito Federal. O crime do Estado brasileiro aconteceu em 1986, mas Dimas foi enviado para quase 30 anos depois do incidente, caindo com o seu container-máquina do tempo nos dias atuais, de 2014 ou 2015. A construção das suas provas passa pelo encontro com Marquim e Sartana. O primeiro, levou um tiro durante a invasão policial; e o segundo, foi pisado pela cavalaria da polícia ao tentar sair do local.
Se esses eventos traumáticos do passado são o ponto de apoio da porção verídica da narrativa (com as suas fotos, os seus recortes de jornal e até, por fim, o tesmunho talking head das vítimas), o presente – o tempo em que habitam Marquim e Sartana, para onde Dimas é enviado para coletar evidências e no qual a narrativa transcorre – é uma versão aproximada e distópica da capital brasileira e do seu entorno. A Polícia do Bem Estar Social marca o controle e a vigilância que atravessam esse presente: os habitantes das cidades satélites só podem entrar em Brasília portando um passaporte, enquanto toques de recolher e patrulhas com viaturas e helicópteros marcam as noites na periferia. Ou seja, um presente próximo no qual os códigos de segregação social são explícitos e não mais apenas introjetados nas relações sociais. Preto e branco vem marcados em letras garrafais ao lado das fotos e nomes dos passaportes, nesse presente que implantou de forma institucional o racismo que a polícia de 1986 também não escondia decretando ao entrar no baile: Branco sai, preto fica!. Um presente no qual os corpos de Marquim e Sartana seguem o seu pós-trauma de segregação, encarceramento à margem, dentro das casas, no porão, no terraço. Como Sartana diz: a amputação do corpo ressoa na amputação da própria cidade para ele.
Ao praticamente cair nesse presente, Dimas perde dinheiro, equipamentos e até a identidade – tanto o documento, quanto a noção de si (relatando a confusão provocada pelo deslocamento). O contato do viajante com o futuro se dá de forma truncada – mensagens parecem não chegar, Dimas é considerado como desintegrado no espaço/tempo, ainda faltam as provas e um partido conservador acaba de assumir o poder, colocando em risco também a situação no tempo vindouro. A missão por muito parece fadada ao fracasso, e Dimas condenado a habitar um não espaço/temporal, dos sem propósito – vagando a esmo por terrenos e campos abandonados.
Se lhe resta algo, se há algum vínculo do viajante com os personagens do presente, esse está na música. A soul e a black music parecem ser necessárias para fazer a máquina do tempo funcionar e fazer as mensagens serem entregues e recebidas intertemporalmente. A música em Branco Sai Preto Fica permanece como a reminiscência impressionante da qual fala Samuel R. Delany. O elo que resta apesar de todos os esforços sistemáticos de apagamento. Esforços que estouraram como os tiros da polícia no baile do Quarentão, tentando apagar passinhos ensaiados, visuais e estilos, relações de amizade e de namoro daquela comunidade. Combatendo na porrada a subjetividade coletiva forjada naquele espaço, evitando a possibilidade de outra narrativa da juventude da Ceilândia.
III
O efeito não é o de questionar a realidade da escravidão, mas de torná-la não familiar por meio de um ziguezaguear temporal que redireciona as suas implicações pela ficção social do pós-guerra, pela fantasia cultural e pela ficção científica moderna, todas alternativas que começam a parecer maneiras elaboradas de dissimular e admitir o trauma.
Kodwo Eshun
Branco sai Preto Fica é um filme de um duplo trauma: o da escravidão e o do ataque policial no Quarentão. Traumas sempre ao mesmo tempo individuais e coletivos e correlacionados: no Brasil a população negra e pobre segue em grandes quantidades ou cárcere nas penitenciárias ou assassinada pelos novos carrascos, a polícia. Marquim e Sartana sobreviveram a tentativa do Estado de apagá-los, mas os seus corpos apenas em partes.
Assim o filme surge como um fragmento narrativo de uma memória coletiva e das memórias individuais que nunca irão compor um discurso totalizante – pois existe desde a sua mais longíqua origem como um fragmento, como uma reminiscência de uma/milhões de história(s) apagada(s). Sua própria materialidade corporal é também fragmento de pedaços que ficaram – no chão da quadra? No chão do hospital? – no passado. Um pouco como os pedaços e os restos de próteses encontrados e recuperados por Sartana, em Branco Sai Preto Fica existem mais elementos do que possibilidade de montá-los na mesma narrativa. Como e por que Dimas aparece nos desenhos de Sartana? Como o viajante finalmente consegue os depoimentos das vítimas? Quando Marquim e Sartana se reencontram? Os encaixes são imperfeitos e os furos são consistentes.
Mas eis uma história fragmentada de uma história que só pode ser fragmentada, para que sua imperfeição possa abarcar os seus corpos amputados e protéticos, a dança do jumento e a jovem guarda, os planos de reparação do passado no futuro simultâneos aos de destruição do presente. O fragmento tira os conectivos de oposição entre os elementos díspares, não gera teses (antíteses ou sínteses). O fragmento são todas as histórias, todas os restos, os pedaços, as narrativas que não foram apagadas. A história da diáspora africana é feita de apagamentos: desde o início da África para as Américas (a ancestralidade perdida), passando pela escravidão (os documentos queimados) até a atualidade (o genocídio da juventude negra e pobre). Então, incorporar o não narrado, os buracos que se formaram em anos de borracha, faz parte da empreitada afrofuturista de criar outras possibilidades históricas.
IV
A noção de afrofuturismo dá origem a uma antinomia perturbadora: pode uma comunidade cujo passado foi deliberadamente apagado, e cujas energias foram subsequentemente consumidas pela busca por traços legíveis da história, imaginar futuros possíveis?
Mark Dery
O filme termina, como tantas ficções científicas, em um paradoxo temporal: o da impossibilidade do presente, que ao implodir-se como única linha de fuga viável,carrega junto consigo o passado e o futuro. A explosão catártica de Brasília pela bomba musical construída por Marquim e Sartana e observada do alto pela cabeça gigante voadora de Dimas leva a narrativa a um ponto de incompossibilidades infinitas. Tudo foi pelos ares. Marquim e Sartana conseguiram escapar em 12 minutos. Dimas desmaterializou-se como um ser gigante ao ocupar o céu do apocalipse. Dimas permaneceu nos escombros disparando tiros inexistentes em inimigos invisíveis. As famílias de Marquim e Sartana, e de outros atacados pelo Estado no Quarentão, foram ressarcidas no futuro, graças as provas de Dimas. O futuro não existe mais.
Seria possível ao mesmo tempo explodir o presente que amputa e garantir um futuro com mais justiça para a população negra e pobre? Nesse dilema e no seu paradoxo dos tempos, Branco Sai Preto Fica mostra-se acima de tudo um afrofuturismo com raízes profundas nas questões do seu presente – de dentro e de fora do filme.
*Citações livremente traduzidas de:
DERY, Mark. Black to the future: interviews with Samuel R. Delany, Greg Tate, and Tricia Rose.
ESHUN, Kodwo. Futher considerations on afrofuturism.