Por Fábio Feldman
Em algum ponto da década de 80, na famosa galeria Christie’s, o leiloeiro inicia a sessão. O primeiro lance é de 5 milhões e quinhentos mil dólares. O valor, contudo, escala rápido. A peça leiloada é uma das famosas naturezas-mortas com girassóis de Vincent Van Gogh. Assim que os lances alcançam a casa dos 12 milhões, as imagens de arquivo dão lugar a um plano de Van Gogh, representado por Tim Roth, culpabilizando o irmão pela completa estagnação de sua carreira. Em off, a voz do leiloeiro segue anunciando a escalada astronômica do valor da tela. São essas as primeiras cenas de Van Gogh – Vida e obra de um gênio, cinebiografia dirigida por Robert Altman. Nela, o pintor holandês é concebido como um ser humano incompreendido, à frente de seu tempo (como a montagem inicial deixa claro). Encarnação do gênio romântico, ele vive por sua arte, vitimado por uma espécie de transe estético contínuo. Tudo o que o cerca é vulgar. Sua vida interior, por outro lado, refulge como uma via de acesso para a transcendência.
Um ano após o lançamento de Van Gogh – Vida e obra de um gênio, outro cineasta resolve lançar sua biografia do artista, atingindo, todavia, resultados bastante diferentes. Em Van Gogh, Maurice Pialat se nega peremptoriamente a idealizar seu protagonista. Famoso pelo estilo despojado, o autor de Loulou e Nós não envelheceremos juntos nos revela, nomeadamente, um homem. Um homem acabado, sim, apoplético, consumido pela dúvida, pela doença e por uma percepção imprecisa de si e dos outros – mas, ainda assim, um homem. Mais do que alguém excepcional preso no interior de uma realidade medíocre, Van Gogh foca o mistério da excepcionalidade oriunda do banal, a grandeza que emerge do corriqueiro.
Abro esta crítica de Mr. Turner mencionando os Van Goghs de Altman e Pialat por enxergar no mais recente filme de Mike Leigh uma espécie de síntese das intenções expressas por ambos os cineastas em seus respectivos trabalhos. Antes de desenvolver minha leitura, porém, gostaria de tecer algumas considerações gerais acerca da obra do grande autor inglês.
Analisar a filmografia de Leigh é um desafio. A um só tempo monocórdia e desigual, reiterativa e aberta a todo tipo de interpretações, ela se firma como uma das mais singulares do cinema contemporâneo. Muito já foi atestado acerca do estilo improvisacional do diretor, da recusa que mantém em iniciar projetos com a escrita de roteiros, e do método a partir do qual, ao longo de meses de ensaios, cada obra que conduz é coletivamente engendrada. Em função disso, seus personagens, pertencentes, via de regra, à classe trabalhadora inglesa, nunca parecem integrar esquemas narrativos. Antes, configuram-se como partes de um mundo em formação.
Tal mundo, verdade seja dita, não é sempre o mais solar, motivo pelo qual a pecha de miserabilista tende a ser atribuída a Leigh. A insurgência do mal na vida cotidiana é, certamente, uma constante em sua produção. Seja como ondas se chocando contra o estoicismo dos protagonistas de Um ano mais; seja na forma de uma série de pequenas provações, desafiando o olhar de Poppy em Simplesmente feliz; seja, rosselinianamente, enquanto fruto do embate entre as ações de Vera Drake e as imposições do sistema – o sofrimento é uma constante na trajetória dos que habitam as paisagens suburbanas do diretor, comprovando a absurdidade inerente à experiência humana e a natureza violenta do tempo. Entretanto, a representação da dor não é, aqui, um telos. Mike Leigh não é Michael Haneke, empatia é a base de seu jogo. Ao invés de objetivar a geração de fontes sádicas de prazer ou a construção de um discurso moralizante, sua exploração dos efeitos do mal sinaliza a busca pela humanidade profunda de seus personagens. É através desses efeitos que repressões se dissipam e reparações são estabelecidas. As lágrimas de Nicola, a anoréxica e neurastênica garota de Life is sweet, a esfericizam e dignificam. A internação do filho de Phil e Penny leva o casal de Agora ou nunca a enfrentar seus próprios demônios e reanimar os resquícios de um amor perdido. O confronto final dos membros de uma família, em Segredos e mentiras, abre fraturas no modo como enxergam uns aos outros, renovando relações contaminadas. Até os indivíduos menos simpáticos, os grandes excêntricos, os idiotas, também, no auge de sua dor, se mostram humanos, forçando-nos a romper o tecido tipificante que os envolve e descobrir neles um pouco de nós mesmos (penso, sobretudo, em Ricky, o desajustado estudante de psicologia de Career girls, e, obviamente, Scott, o instrutor de direção, que, em Simplesmente feliz, após uma violenta explosão de sentimentos, projeta sobre o alvo de seu afeto a sombra de um homem triste, solitário e sensível). Como Fellini, Leigh não se furta a conceder àqueles que cria uma vida dura, repleta de desafios – mas opta por se manter, invariavelmente, ao lado deles, orgulhosa e compassivamente. É essa sensibilidade que o guia como autor, que o leva a conceber narrativas tão abertas, melancólicas e repletas de verdade.
Dito isso, acredito que, embora se circunscreva dentro do conjunto, Mr. Turner é também uma espécie de filme-exceção. Traçar paralelos entre ele e as demais criações de seu diretor demanda certo esforço interpretativo, tanto em função de sua constituição estética algo diferenciada quanto da temática que abraça. Em realidade, tais paralelos são facilmente estabelecidos apenas quando direcionados a um outro corpo estranho: Topsy-Turvy. Ambos são filmes de época, baseados em fatos reais e relacionados à vida e atividades de artistas consagrados. Nada mais distante dos dramas enfrentados pelos working-class heroes da parte baixa de Londres. Acrescente a isso o fato enigmático de uma das cenas de Topsy-Turvy se repetir quase integralmente em Mr. Turner – refiro-me às conversas de Gilbert e Turner com seus pais, relativas, igualmente, ao papel das mães ausentes – e torna-se possível concluir que se tratam de obras irmãs. O que não quer dizer que não existam entre ambas diferenças fundamentais, principalmente em termos de abordagem.
Enquanto Mr. Turner pode ser interpretado como um estudo de personagem, Topsy-Turvy se aprofunda menos em Gilbert, Sullivan e sua equipe, do que no processo de montagem da peça a que se dedicam a produzir. Cai, logo, em um território bastante explorado por Robert Altman – não o Altman de Van Gogh, de Imagens ou Três mulheres, mas aquele influenciado por Jacques Tati, equilibrista de tramas e superfícies, adepto dos diálogos sobrepostos e das mise-en-scènes virtuosas (em suma, o Altman que trouxe sucesso a Altman). Em filmes como Nashville, por exemplo, considero sua abordagem “superficializante” bem-sucedida. O equilíbrio que impõe a seu painel complexo não impede o autor de extrair sentido das arestas, iluminando, tangencialmente, as personalidades dos homens e mulheres que representa e os ambientes que povoam. Como pontas de icebergs em meio a um oceano, cada um deles sintetiza um pequeno enigma – e aqui é impossível não lembrar de Barbara Jean, a cantora country belamente interpretada por Ronee Blakley no clássico de 75. Há momentos, porém, em que tal abordagem não me parece render bons resultados, e os pequenos centros de ambigüidade acabam se tornando meros tipos, peças no interior de uma engrenagem, cujas existências se justificam meramente através de um viés irônico. É quando o esquema se torna mais importante do que aquilo que tem a dizer.
A meu ver, é o que ocorre em Topsy-Turvy. Pela primeira vez em sua carreira, Leigh privilegia um contexto em detrimento daqueles que o estabelecem. Conseqüentemente, constrói uma obra curiosa, dotada de momentos inspirados (quase todos protagonizados pelo competente Jim Broadbent, na pele de Gilbert) e uma bela reconstituição da Inglaterra vitoriana. O que, para seus fãs, é pouco. Talvez engessado pelas demandas por acuracidade histórica, Topsy-Turvy me parece frio, isolado dentro de uma filmografia notória pela abundância de momentos humanos. E ainda que diversas das estórias que compõem sua narrativa possam ser interpretadas como críticas a convenções fundantes da cultura inglesa, uma certa falta de foco o acomete – o que, juntamente com o mau desenvolvimento de seus vários personagens, contribui para a impressão de que, possuindo quase 3 horas de duração, o filme segue inacabado. Creio que o mesmo, definitivamente, não pode ser dito acerca de Mr. Turner.
Narrativa de interstícios, a última realização de Leigh é, simultaneamente, um acréscimo familiar a seu cânone e um exercício de ruptura para com ele. Sua primeira cena nos deixa antever boa parte do que está por vir: duas senhoras caminham por um campo holandês, contando casos triviais. Assim que saem do plano, a câmera se movimenta e nos deparamos com a silhueta de J.M.W. Turner, em pé, desenhando em um bloquinho a paisagem que contempla. Não há nada de impressionante em seu vulto: corpulento, vestido à moda da classe média da época, ele exerce seu ofício. De imediato, torna-se claro que não nos encontramos diante do gênio romântico. Como em Pialat, os esforços diretoriais de Leigh enformam e reforçam a presença de um paradoxal “gênio comum”. Porém, conciliado a eles atua outro agente fundamental: a fotografia de Dick Pope.
Em coletiva de imprensa conferida no Festival de Cannes, Pope, colaborador freqüente de Leigh, admitiu que se inspirou nas paletas de cor do próprio Turner, concedendo ao filme uma aparência altamente estilizada. Entretanto, o que torna este tão interessante é, justamente, a dissonância entre tais decisões plásticas, que remetem a uma estética do elusivo, repleta de laivos místicos, e o estilo de Leigh, sempre mais interessado nas particularidades do dia-a-dia e nos efeitos psicológicos e emocionais que suscitam. Seca, concisa e direta, a narrativa cobre 26 anos da vida do pintor, seu ápice profissional, sua gradual decadência em termos de aceitação pública, suas relações problemáticas com família e amantes e sua dificuldade em lidar com o que constitui seu entorno. Mais do que conjecturar acerca do mistério que justifica e estimula a atividade criativa, Leigh expressa formalmente a raiz do mistério, envolvendo em maravilhosas cores e luzes outra de suas tragédias cotidianas.
No que tange ao personagem em si, devo mencionar a atuação de Timothy Spall. Há anos Leigh trabalha com os mesmos atores. Spall (assim como Broadbent, Alice Steadman, a falecida Katrin Cartlidge, Ruth Sheen e Lesley Manville) faz parte de sua trupe desde o início da década de 90, tendo oferecido junto a ela algumas de suas mais intensas interpretações. E, embora não seja justo considerar seu retrato de Turner superior a, digamos, suas performances em Agora ou nunca ou Segredos e mentiras, é seguro afirmar que algo de extraordinário foi aqui alcançado por ele. Encarnando um homem de contradições, Spall investe na sutileza, permitindo que fraturas emerjam da contenção. Seus sorrisos são discretos, seus gestos, carregados. Os momentos de luto não o levam a exprimir emoções com grande nível de intensidade, mas se depreende de seu corpo a força de sua dor – como comprova a sucinta e tocante cena em que recebe a notícia da morte da filha. Essa fisicalidade, aliada ao modo titubeante como se comunica (ora se expressando profusamente, ora se perdendo em meio a grunhidos ininteligíveis) é a principal forma de acesso à personalidade de Turner. Artifícios externos e o anedotário que o circunda nos dizem menos do que seu corpo e sua enunciação. E o fato de ambos não se casarem à imagem convencional do gênio depõe ainda mais a favor de Stall e de seu diretor. O resultado da parceria é o perfil de uma pessoa real, confusa e em desarranjo com o mundo. Seria tal desarranjo a força que impulsiona seu talento?
Finalmente, há a questão do tempo (tema central também da sub-valorizada obra-prima Um ano mais). Apesar de cobrir quase 3 décadas da vida de Turner, valendo-se de elipses que, nas mãos de um realizador menos talentoso, redundariam em ferramentas para a manutenção de um esquema grosseiro, Leigh se nega a nos oferecer uma cinebiografia convencional. Os casos retratados não se encadeiam de forma a expor, linear a coerentemente, o percurso de um herói. Como ocorre em todos os seus melhores trabalhos, o que temos é uma obra lacunar, focada em uma figura que nunca se mostra interessada em ser decifrada – embora tampouco invista na manutenção de uma mitologia pessoal. Essa narrativa vacilante, elusiva e frágil como a vida, revela a relação de um homem com o tempo. Tempo que não apenas o limita e desafia, como alimenta seu ímpeto estético. Novamente, a dissonância entre a secura composicional e o esplendor da fotografia me parece ser responsável pela geração de um discurso: o que seria a solitária e obsessiva batalha artística de Turner com e contra as luzes e cores de seus naufrágios senão uma perpétua batalha com e contra o tempo? O que figura no cerne da arte romântica senão o desejo de superação da realidade fenomênica e a ascensão rumo ao eterno? Esse onde sem campo, esse quando sem hora, em que o mal é exorcizado, as emoções apaziguadas e a morte extinguida?
Nos últimos minutos do filme, Turner morre, mas a cena seguinte traz, novamente, sua silhueta, pintando contra o sol. O espetáculo angustiante da vida, com todo seu som e fúria, não é páreo para o potencial espiritual da arte. Arte esta elaborada por um sujeito falhado, complexo e, em última instância, banal. É entre o ideal e o real, as cores da vida cotidiana e as de sua alternativa, que Mr. Turner se posiciona.