Entrevista – O afeto no documentário brasileiro contemporâneo

Palavra que por vezes soa gasta em tentativas de se apreender aspectos da contemporaneidade, o afeto é um elemento que se manifesta com potência e certa regularidade no documentário brasileiro recente. Filmes como Santiago (2007) e Elena (2012) ressaltam uma tendência em que o afeto aparece não apenas como tema, mas como componente estético e narrativo essencial. O jornalista Renato Contente conversou com o pesquisador Fábio Ramalho sobre o tema que motivou sua tese de doutorado pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE): a relação entre cinema e afeto. A entrevista foi realizada como parte do processo de realização de uma matéria para a Folha de Pernambuco, mas acabou apontando interessantes desdobramentos do tema, para além do seu contexto inicial. Por esse motivo, o Multiplot se propôs a publicar agora, na íntegra, o conteúdo da conversa.

Renato Contente: É possível falar de uma estética do afeto no documentário brasileiro contemporâneo?

Fábio Ramalho: Há sem dúvida uma tendência a pensar o afeto no cinema a partir da configuração de uma estética, ou, para ser mais específico, tendo em vista certas maneiras de filmar, modos de constituição das imagens, procedimentos formais e estéticos assumidos pelas obras. É o caso, por exemplo, da recorrência com que o afeto surge para pensar a estética do fluxo no cinema contemporâneo. Sem dúvida, um exercício semelhante pode ser empreendido em relação ao campo da produção brasileira de documentários. Porém, eu acredito que esse tipo de abordagem, que prioriza a mobilização do afeto para pensar modos de filmar, tende a ser restritiva, deixando passar alguns aspectos do conceito que são muito produtivos para uma reflexão mais ampla sobre as imagens. Se voltarmos nossa atenção para a dimensão de encontro que é incontornável para pensar o afeto, veremos que é toda uma ética das relações que se abre à reflexão; todo um interesse acerca de composições e decomposições de forças que atravessam o cinema em suas múltiplas instâncias: na fatura do filme, nos contextos de realização e também nas relações que nós, espectadores, podemos estabelecer com as obras. Temos aí muito mais que um modo de filmar ou uma determinada configuração visual: trata-se de uma maneira de enxergar o mundo e as relações, e, em particular, uma maneira de enxergar o lugar e a importância das imagens nessa rede de relações.

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R.C. O que essa apropriação de um olhar afetivo no cinema pode sugerir sobre o momento que vivemos atualmente?

F.R. O fato de que o afeto sobressai de maneira eloquente em tantos documentários recentes parece sugerir a convicção de que, diante da complexidade do mundo, é preciso olhar para as questões que movem o cinema a partir de múltiplas dimensões, contemplando suas muitas nuances. Isso implica não se restringir a uma consideração sobre as funções, posições e categorias socioeconômicas que orientam o plano de organização das sociedades. É necessário perceber como esse plano está atravessado por outro plano, o das forças e intensidades que não são redutíveis aos dados mais, digamos, aparentes do real. Com isso não pretendo afirmar que esses planos ou dimensões seriam exteriores ou mutuamente excludentes. Pelo contrário, trata-se de privilegiar uma compreensão segundo a qual as posições sociais dos sujeitos, sua condição de classe e seus valores estão permeados por um componente afetivo que complexifica a experiência. Tome-se o caso de Doméstica, de Gabriel Mascaro, um dos filmes que você mencionou e que, eu concordo, é uma das obras mais importantes para pensar o afeto no documentário contemporâneo, justamente pelo fato de seu ponto de partida ser tão, por assim dizer, “marcado”. Claro que é válido discutir a condição daqueles sujeitos como trabalhadores, as relações de poder e assimetrias de classe que marcam esse tipo específico de exercício profissional. Mas, poderíamos perguntar: nesse caso, o que o filme mostraria que de certa forma já não sabíamos? O que é mais relevante no filme é justamente o fato de que ele se volta para o elemento mais ambíguo daquelas relações: o modo como certos limites são borrados e as fronteiras do convívio diário vão se tornando pouco legíveis. O que Doméstica mostra é precisamente o fato de que o sentimento e as emoções não estão situados numa posição de exterioridade em relação aos intricados conflitos e códigos sociais. Daí por que os personagens estão o tempo inteiro negociando o seu próprio entendimento sobre a qualidade das suas relações com os outros, confrontando-se de modo confuso, e por vezes até mesmo atordoante, com o embaralhamento entre o plano de organização e o plano das intensidades corporais e afetivas. Filmes como Doméstica se concentram em tonalidades afetivas mais, digamos, sutis e ambivalentes, mas não seria despropositado lembrar que mesmo a mais intensa polarização dos conflitos sociais é uma manifestação corporal, tanto quanto (ou talvez mais até que) uma questão de “consciência”.

R.C. Em filmes como “Santiago” e “Elena”, seus respectivos realizadores transparecem abordagens guiadas pelo afeto e pela proximidade (ou pelo desejo de proximidade) com o objeto do filme. Em que medida essa relação íntima influencia – de maneira positiva ou negativa – na construção do filme?

F.R. Esse desejo de proximidade de que você fala nos leva a perguntar até que ponto a grande importância atribuída ao afeto no cinema se conecta com outro fenômeno contemporâneo: o da hipervalorização da intimidade, da primeira pessoa, dos relatos subjetivos. Decorrem daí muitas possibilidades, mas também, claro, algumas limitações. Na melhor das hipóteses, uma perspectiva centrada na intimidade permite vislumbrar nuances e potencialidades expressivas que permaneceriam latentes numa abordagem excessivamente “objetiva” ou panorâmica de um problema. Na pior das hipóteses, temos sempre o risco de que tal olhar não consiga sair de si, permanecendo preso a uma ótica muito fechada e individual. É importante lembrar que uma das características mais interessantes do afeto é a sua qualidade transpessoal, ou seja, o fato de constituir forças que transbordam uma dimensão individual e personalizada para atravessar, conectar e fazer oscilar a potência de diferentes corpos. A questão que se coloca, então, é se a elaboração de uma perspectiva íntima sobre determinada questão ou sujeito é ou não capaz de dar esse salto que torna a experiência compartilhável, apropriável coletivamente. No fundo, o que entra em jogo aí, como eu dizia, é a potência que uma obra tem de suscitar múltiplas relações entre espectador e obra, e como essa potência pode ser ampliada ou diminuída de acordo com as estratégias assumidas.

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R.C. Qual o papel do audiovisual na formação dessas articulações estéticas e políticas do afeto?

F.R. Além de permitir explorar as conexões entre os diferentes planos de que falava antes, há também outro aspecto que torna o afeto tão relevante para o documentário. De certo modo, é como se o cinema fosse ao longo do tempo consolidando uma lição, um aprendizado: o de que ali onde falha ou falta o discurso, é a expressividade do corpo que pode nos ajudar a acessar o tema ou sujeito que a câmera busca investigar. Isso é especialmente relevante para o documentário, que em certos momentos deu uma importância tão grande à fala. Temos um pouco disso em Santiago: esse filme de João Moreira Salles nos estimula a problematizar o mesmo entrecruzamento complexo entre o vínculo afetivo e a diferença irredutível de lugares e funções que eu apontava no filme de Mascaro. Se a assimetria de poder que marca a diferença de posições entre quem filma e quem é filmado fazem do filme de Moreira Salles o documento de um fracasso, há, no entanto, algo do personagem que se expressa a despeito dessa assimetria. É o caso dos planos das mãos de Santiago dançando no ar: se essas imagens correm o risco de resvalar para uma certa pieguice, por outro lado elas atestam que o corpo pode encontrar uma margem para expressar-se frente à interdição da fala.

Cabe ainda ressaltar que a circulação das imagens no contemporâneo é um forte elemento catalisador de respostas políticas dentro de um amplo espectro, do mais emancipatório ao mais reacionário. De fato, embora pareça haver uma tendência a pensar o afeto em termos positivos – pela criação de vínculos e pela potência – , o afeto também tem a ver com perda de potência e com elementos muito negativos: ressentimento, dor, ódio, humilhação. O entendimento de que o afeto varia positivamente ou negativamente poderia ser pensado em termos políticos mais amplos pelo fato de que a constituição de um corpo coletivo pode atender tanto à ocupação afirmativa dos espaços públicos quanto às situações abomináveis de linchamento, por exemplo. O ódio de classe e a hostilidade às diferenças são paixões muito, muito tristes e, infelizmente, alguns segmentos da sociedade não param de catalisar esse tipo de sentimento com fins bastante reacionários. Por tudo isso, o afeto é um elemento imprescindível para pensar a política hoje.

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R.C. Alguns críticos enxergam uma estrutura narrativa melodramática em documentários como Elena e As canções. O que implica essa apropriação de aspectos do melodrama (tradicionalmente vinculado à ficção) no documentário?

F.R. É todo um universo muito produtivo que se abre a partir dessa aproximação entre documentário e melodrama, a respeito da qual a pesquisadora Mariana Baltar, da Universidade Federal Fluminense, é sem dúvida uma das maiores referências. A inegável contribuição desse gesto de aproximação é a de enriquecer a discussão sobre os elementos de gênero no cinema, além de reposicionar o lugar e a importância da emoção na teoria e na crítica. Nesse contexto, o que me interessaria particularmente sublinhar é o fato de que todos nós de certo modo aprendemos como sentir e como expressar aquilo que sentimos, e nem por isso as emoções se tornam menos “verdadeiras”. Isso quer dizer que o afeto envolve também pedagogia e imitação.

A compreensão de que uma pessoa organiza sua imagem para a câmera não se restringe, portanto, ao seu discurso, à sua postura e às suas ações: mesmo a emoção entra no jogo da encenação. Sabemos que Eduardo Coutinho nos últimos anos investigou com muito interesse esse ponto, em fimes como Jogo de cena e As canções. Muito antes, porém, essa questão já permeava o seu cinema, e os momentos musicais de seus filmes trazem isso à tona de maneira evidente. A contenção, a hesitação, a explosão passional, o clímax, o apaziguamento, tudo isso é elaborado corporalmente de maneira muito sofisticada pelos personagens. Antes eu dizia que o corpo encontrava brechas por onde se expressar quando o discurso faltava. Agora seria preciso acrescentar que o afeto é não apenas aquilo que transborda o discurso; ele também atravessa e se articula com os códigos que nos ajudam a expressá-lo e torná-lo legível.

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