Por Fernando Mendonça
Um dos realizadores de maior influência para o cinema contemporâneo, pelo que experimentou e rompeu no audiovisual, a partir dos anos 1970, James Benning continua sendo uma pedra de toque para os atuais desdobramentos de vanguarda e os caminhos auto reflexivos da imagem, num sentido prático de criação. Foram necessárias três décadas para que a obra do autor ecoasse com relevância nos pensamentos teóricos e acadêmicos, pois, por muito tempo, foi mais comum vê-lo mencionado por outros cineastas e artistas do que por críticos e curadores. O recente impacto no reconhecimento e retomada de suas questões, em compilações impressas e coberturas eletrônicas, é valorizado ainda mais pela contínua produção que Benning apresenta, não apenas em cinemas e festivais, mas em diversos ambientes e contextos de projeção.
Um de seus experimentos mais recentes, BNSF (2013), filme primeiramente realizado em formato de instalação, em 2008, posteriormente ampliado e estendido para a exibição em salas coletivas, consiste num longo e único plano de quase 200 minutos, capturado digitalmente sobre uma paisagem desértica americana. O quadro é atravessado na diametral pelos trilhos de uma linha da rede ferroviária BNSF, por onde passam trens, em esporádicos intervalos, no decorrer do longa-metragem. Trata-se, claramente, de um exercício que desafia os parâmetros de expectativa do público, seja pelo tempo de exposição da imagem, como pelo esvaziamento que seu conteúdo problematiza.
A relação Cinema e Deserto encontra aqui um curioso exemplo para impulsionar ramificações deste diálogo. Pois BNSF aproxima as qualidades de sua imagem às da areia – sempre movediça e centrípeta, dinâmica e irrepetível – ao mesmo tempo em que tece provocações aos limites do próprio cinema enquanto linguagem, realocando sua primeira condição fotográfica e, principalmente, pictórica, enquanto encenação do mundo. A tela de Benning, em diversos de seus filmes, é herdeira direta da série que Monet concebeu para avaliar a gradação de cores na Catedral de Rouen. O autêntico movimento buscado pelo diretor não é somente o mecânico, do trem, mas o que emana das formas e das sombras, nas pedras, no relevo do horizonte, na árida vegetação, que brota na consciência diante do correr das horas, o lapidar do tempo.
Por toda a sua carreira, o realizador tem sido constantemente associado ao imaginário dos irmãos Lumière, pela maneira como lida com o acaso, a angulação dos planos e o raro equilíbrio documental de subjetivar formas fixas e históricas dentro de um universo próprio, numa linguagem que se assume em processo de descoberta. BNSF tem lugar dentro deste repertório, nutrindo pontos de interseção com os pré-cinemas pela maneira como estes veiculam um caráter de movimento ainda coerente para o séc. XXI. A dilatação da imagem-tempo, que Benning empresta das experiências mais radicais de Andy Warhol, amplia a dimensão dos limites intrínsecos à sua linguagem, fomentando a rarefação das margens que distinguem o Cinema da Pintura, por exemplo.
Eis uma compreensão dos novos parâmetros de produção artística que nos parece descrever com precisão aquilo em que consiste um projeto como BNSF: “um dispositivo de inscrição relacionado à materialidade dos meios e à criação de subjetividades”. James Benning é atualmente um dos únicos inscritores de sentimentos em superfícies geográficas que conflitam seu movimento interno na relação com as ‘bordas mortas’ de um quadro. Pois não é uma tela, ou um computador, ou uma sala escura, ou um ambiente de museu, que impõe limites ao mover da vida. Viver não tem margens.