Por Filipe Chamy
Quem acompanha a carreira de Alain Resnais sabe que esse hoje nonagenário não se cansa de sempre inovar os próprios caminhos de expressão: mexe na estrutura narrativa, na forma material do filme, brinca com a metalinguagem, os atores, os gêneros; faz de uma farsa teatral genialmente encenada (Smoking / No smoking) a uma opereta (Beijo na boca, não), de homenagem a quadrinhos roteirizada por Jules Feiffer e com inserções de animação (I want to go home) a ficção científica não-cronológica e existencialista (Eu te amo, eu te amo), entre décadas de inventividade motivada antes por um desejo de se exprimir com a criatividade que lhe empolga no momento que por deliberado senso de pioneirismo ou desejo de iconoclastia. E se no começo da carreira era comum Resnais pedir para romancistas e escritores sem prática cinematográfica fazerem roteiros para ele (como o fizeram Marguerite Duras, Alain Robbe-Grillet, Jorge Semprún e Jacques Sternberg, por exemplo), agora ele surpreende por, aparentemente pela primeira vez em sua admirável filmografia, adaptar um romance — expediente simples para muita gente, mas inédito em Resnais, que escolheu o excelente relato contemporâneo L’incident, de Christian Gailly, para adaptar às telas; sim, porque Resnais agora também, disfarçadamente e próximo de reputada cegueira, resolveu também dar suas pinceladas nos roteiros de seus filmes, o que parece vir com mais força nos últimos anos. Então não resta dúvidas de que Ervas daninhas é mais um acontecimento único na ficha resnaisiana.
O romance de Gailly é quase todo composto de diálogos livres, misturados a uma trama quase sensorial, de tato e de contato. Lendo-o, é bastante difícil encontrar Resnais naquelas páginas, mas, vendo o filme, observa-se que é Resnais do começo ao fim, inescapavelmente, sem qualquer hesitação. Parece talhado para suas idiossincrasias, e a maneira com que filma aquelas personagens e ocorrências faz qualquer um pensar que é um roteiro original escrito especialmente para Resnais, e não um romance de um escritor ainda um pouco obscuro no cenário das letras mundiais, que o escreveu quase quinze anos antes de Resnais adaptá-lo para o cinema.
É uma história de acasos e consequências, em que o rico mundo interior de cogitações das pessoas confunde-se com o anódino da paisagem, a robusteza algo incômoda do ambiente, o deserto da realidade que não sabe acolher as emoções profundas que, em descrição seca, parecem deslocadas ou arbitrárias. É portanto de dois mundos que falamos, e só há choque, desespero e humor quando há a colisão entre esses mundos, como nos conflitos polícia/lei/sociedade versus dramas particulares — que a certo ponto do filme perdem todo o sentido, explicando-se assim o sumiço de certas figuras proeminentes no começo da trama, procuradas por um evento e depois descartadas e desconsideradas.
Fugindo um pouco da metáfora de um Jules e Jim, as decisões inopinadas que existem em Ervas daninhas agem um pouco como nossas mudanças de humor cotidianas: aquilo que nos agrada agora pode ser um desprazer depois; e se os vai-e-vens do casal Marguerite Muir (Sabine Azéma) e Georges Palet (André Dussollier) parecem estranhos, por que não considerar que são pessoas estranhas? A esquisitice faz parte da vida, não dá para higienizar narrativamente todo caráter, ainda mais na construção artística. Então assumimos facilmente que aquela mulher foi roubada, sua carteira foi encontrada pelo homem, e esse incidente deu origem a uma profunda modificação em suas vidas.
É isso que Resnais mostra, com suas demonstrações de humor e irreverência (os cortes precisos, as elipses, as alterações de tom, a câmera extremamente singular), sua escolha pela adaptação deste material e não de outro, seu carinho com os intérpretes (que aparecem em vários de seus filmes, alternadamente ou não), o aspecto artesanal de sua obra: incidentes há, a vida é feita deles. A beleza está no captar ou não sua importância: quando formos gatos, poderemos comer croquetes?