Por Filipe Chamy
A adaptação literária no cinema é repleta de preconceitos, dogmas, institutos. Quase sempre os comentários versam sobre a infidelidade adaptativa, a impossibilidade de se condensar centenas de páginas em poucos minutos ou horas, as facilidades e dificuldades de transposição de linguagem de uma mídia a outra, diferentes enfoques etc. Mas pensa-se nisso para obras extensas, romances, sobretudo. E o que dizer quando se adaptam narrativas enxutas, como um conto ou uma crônica?
O homem nu, de Fernando Sabino, fica no meio dessas duas formas. E então toda essa problemática sobre modificação ou transmutação é preciso ser repensada: a história original sendo muito curta, o filme é mais “completo” que ela?
Discutir as coisas assim não dá em nada. Basta ver que é outro espírito, outras metas. E não se pode falar em qualquer tipo de adulteração, pois o próprio Fernando Sabino é um dos autores do roteiro deste filme. Então, pode-se dizer, o personagem está sempre ali, com seu criador.
Criar um filme de duas horas a partir de poucas páginas é bastante curioso, e quem conhece a obra de Sabino pode estranhar a demora da introdução da saga da nudez propriamente dita, que só se dá do meio do filme em diante. Antes, toda a vida do professor Silvio Proença (feito com grande presença por Paulo José, pouco antes de dar vida a outro “herói” literário: o Macunaíma de Joaquim Pedro de Andrade) é repassada em breves pinceladas: sua relação com a mulher (feita por Leila Diniz, que a certo ponto é indagada se sonhou com um avião caindo, trágico paralelo com a realidade de sua vida), seu tédio com a burocracia dos eventos a que se submete, uma certa infidelidade moral que não o liga a nada e o deixa perenemente flutuando por sobre palestras, livros, reuniões.
Aí ocorre o choque da nudez: e Proença vira a caça, o inimigo. O que é mais natural (a ausência de roupas a esconderem o corpo) é considerado subversivo, perigoso. Proença é combatido, não o deixam explicar-se, não há redenção para ele. O absurdo da situação é um pesadelo amorfo, parece ridículo (e o é), parece inconcebível (e o é), mas está acontecendo, ali, com alguém que até então nunca havia sido vítima de nada, exceto da morosidade burguesa habitual. Proença não sabe se defender, pois nunca precisou de defesa.
Roberto Santos dirige o filme quase como um documentário, seguindo o homem nu de instante a instante, sempre junto a ele, sentindo suas pausas e cansaços, suas dores, percepções, esperanças. Haverá solução? A coisa parece sair mais e mais do controle, ao ponto de que a crônica de costumes metamorfoseia-se, via ácida sátira, em surreal descrição de metáforas. O convencionalismo político, a hipocrisia cotidiana, o caos das comunidades contemporâneas, enfim, é quando as roupas são retiradas que vemos o quanto a nudez (a verdade, a sinceridade, a ausência de disfarces) incomoda, o quanto aquilo é flagrantemente iconoclasta. O homem nu é, portanto, um filme político. Agoniante, incisivo. Que isso não impeça ninguém de abstrair a seriedade e consolar-se com a graça da triste odisseia de Silvio Proença: como Roberto Santos e Fernando Sabino reforçam no final, esta é uma sociedade do espetáculo, em que as exibições tanto são mais divertidas quanto deixamos de lado o pudor e vemos que afinal, todos estamos nus.