Crimes de Paixão (Ken Russell, 1984)

Cult-movie perdido da década de oitenta, Crimes de Paixão foi um dos filmes mais polêmicos (e censurados) produzidos em Hollywood naquele período. Ken Russell era um diretor de obras que prezavam pelos excessos, só que depois do seu auge na Inglaterra muito cedo veio um período de baixa em sua carreira, quando se contentava em fazer filmes malucos sem que fosse muito além dessa condição. Os filmes beiravam o nonsense, mas também o kitsch, e suas estruturas anárquicas mal disfarçavam o que elas tinham de mal-pensadas e desleixadas. Nesse sentido, a ida do diretor para o cinema americano nos anos oitenta representou um ganho, pois ainda que não tenha sido o suficiente para salvar a sua carreira (ou sequer realizar alguma obra memorável), o obrigou a aplicar o seu estilo adaptando-o a uma linha um pouco mais tradicional, com seus habituais delírios nos personagens e histórias (e nas imagens), porém dentro de uma narrativa mais fácil de acompanhar, contando uma história de maneira direta, privilegiando o trabalho dos atores, o desenrolar da trama e os diálogos.

Crimes de Paixão foi o melhor fruto de Russell em sua passagem na América, ainda que não seja um filme que convença algum detrator do diretor inglês. Uma versão hardcore de A Bela da Tarde com uma bela desenhista de modas (Kathleen Turner) que durante as noites se traveste como uma prostituta de nome China Blue, usando uma exótica peruca loira e saindo às ruas para caçar homens e trabalho. Dona de uma vida dupla, durante o dia é Joanna Crane, que leva uma rotina normal em seu emprego, e à noite se transformaem China Blue. Nessa jornada, conhece Bobby (John Laughlin), contratado pelo patrão de Joanna para segui-la e descobrir o que ela vem aparentando de estranho, e também um reverendo louco (Anthony Perkins) que quer convertê-la, com os três personagens formando um triângulo não amoroso, mas de relações, dos mais bizarros.

É uma história relativamente simples contada com alguns dos elementos inusitados típicos de Ken Russell, por vezes de modo bastante exagerado, bem nos seus moldes. Não deixa de ser um amargo retrato da insatisfação de pessoas que peregrinam pelo submundo noturno das grandes cidades. Os viciados, prostitutas, travestis, frequentadores de cinema pornôs ou cabines eróticas. A imundice e escória das ruas estão fortemente representadas na tela, como que numa viagem a uma boate suja dos anos oitenta, fazendo com que outros filmes que também carregam nas tintas nesse sentido pareçam pouco mais que um passeio no parque. Outro dos elementos deflagradores em Crimes de Paixão é o casamento como uma instituição falida, em torno de casais com relações sexualmente frustradas. É a lembrança de um matrimônio infeliz que levou Joanna a se transformarem China Blue, e as dificuldades com a esposa frígida que fazem com que Bobby se apaixone pela prostituta. Outros clientes de China Blue carregam consigo a impossibilidade de uma realização plena com suas esposas.

O filme conta com um trabalho de iluminação primoroso, e sua atmosfera é trágica e engraçada (o que é realçado pela trilha de Rick Wakeman), com Kathleen Turner num ótimo desempenho, atuando em cenas ousadas (ainda que mal apareça nua), muitas vezes beirando o escandaloso (como na sequência em que ela realiza a vontade de um policial que quer ser sodomizado com um cacetete), cenas que dificilmente outras atrizes famosas fariam (e Kathleen era uma das mais badaladas da época). Sua criação de uma prostituta de esquina é absolutamente inesquecível. Outro destaque é Anthony Perkins, que desde muito cedo em sua carreira, após o sucesso de Psicose, nunca se libertou dos tipos desequilibrados, ficando marcado pelos papéis de psicopata. Aqui ele está assustador e patético como o pregador fanático e moralista que frequenta clubes noturnos com shows de garotas nuas, carregando uma bolsa cheia de apetrechos eróticos (incluindo um vibrador). Ele se apaixona por China Blue, e em razão disso pretende destruí-la para salvá-la. Um dos momentos mais bizarros é quando o padre veste a peruca de China Blue e começa a gargalhar, citação direta que Russell parece fazer do próprio Psicose, com uma personagem (o reverendo) incorporando a outra (o da prostituta) para devorá-la de vez e fazer com que não exista a não ser dentro de si próprio.

Certas bobagens do cineasta ainda estão lá, como algumas brincadeiras infames de Bobby, o personagem de John Laughlin, com a esposa num churrasco com outro casal. A maioria das cenas de Laughlin em família destoa completamente do filme, tornando-o mais flácido, além de se tratar de um intérprete bem razoável. Por outro lado, as cenas familiares servem de contraste de todas as vezes que se adentra o universo noturno de China Blue, como numa versão às avessas de O Mágico de Oz. Sete anos depois, Russell faria um outro filme mais bem-comportado que também girava em torno de uma prostituta, Whore, no qual Theresa Russell (que não tem nenhum parentesco com o diretor) dirige-se diretamente ao público para traçar um retrato de sua profissão.

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