“Eu notei, e tenho notado desde então,
como a maioria das pessoas não se importam
com coisas autênticas.
Elas preferem misturas e maquiagem”.
(Jean Renoir)
Num período de pouco mais de seis meses entre o final de 2010 e meados do ano que termina agora, tivemos a chegada no Brasil de três filmes de autores que já foram (relativamente) melhor recebidos por estas bandas. São eles: A Ilha dos Mortos (George A. Romero), The Hole 3D (Joe Dante) e Aterrorizada (John Carpenter), lançados não nos cinemas, mas vindos direto para DVD, ocupando uma fatia menos nobre no mercado (e provavelmente vistos mais por downloads na internet do que por vias comerciais). O que de certa forma não nos surpreende, pois se nos detivermos na lista de filmes que há anos povoam o nosso circuito exibidor, vamos nos deparar não somente com centenas de títulos insignificantes que figuram somente para cumprir a meta de um determinado número de estreias que se julga o suficiente para o circuito, como também, entre os lançamentos de maior repercussão, com produtos híbridos que misturam a linguagem cinematográfica com a publicitária, televisiva, dos videogames e videoclipes, etc. Ou com muita perfumaria, produtos de centenas de milhões de dólares maquiados com efeitos fáceis de superfície, repletos de decoração, de lugar comum, de ornamentos, e não com um trabalho sensível por parte do cineasta sobre o seu material, e menos ainda com mise en scène.
Nesse panorama, já não há mais lugar para Carpenter, Romero e Dante, alijados da preferência de um público amplo que certamente não desconfia que um plano do último filme de Romero (podemos pensar aqui na mulher cavalgando em disparada, ou a imagem final dos zumbis no horizonte) vale mais que carreiras inteiras de cineastas que prezam pelo “bom cinema”. Sexto filme de zumbis de Romero, A Ilha dos Mortos coloca a temática num outro contexto (o do campo nos limites de uma ilha de refugiados), com pitadas de romance gótico literário do século XIX misturados com elementos políticos e da tecnologia moderna, retomando o personagem de Alan Sprang, do anterior Diário dos Mortos, como o líder de um pequeno grupo de soldados perdidos, enchendo seu filme de atores de TV canadenses que ninguém conhece e filmando em scope com as novas câmeras digitais disponíveis. Não que A Ilha dos Mortos e os mais recentes de Carpenter e Dante sejam dotados de absoluta perfeição, ou que não possam ter suas qualidades devidamente questionadas e, além do que, é preciso que se evite que o entusiasmo de assistir a esses filmes de autores tão especiais provoque um deslumbramento que não parta dos filmes em si, mas da simples assinatura do nome deles nos créditos de direção. Mas são todos eles parte de um cinema com maior ou menor grau de selvagerias, um cinema ainda não domesticado, e sempre existindo em torno da necessidade de uma expressão concreta, sem subterfúgios, frontal, direta e sem firulas.
São todos eles filmes B, algo que nos parece tão distante e pelo qual o grande público já não nutre grande interesse. Filmes B já não cabem mais na tela de um cinema com plateias viciadas nos multiplex ou IMAX, e que descartam como trash um outro legítimo representante do filme B que foi Piranha 3D (2010), que a despeito de duas ou três cenas patéticas constituía uma interessantíssima releitura de alguns conceitos do cinema exploitation (como foi Machete, de Roberto Rodriguez), abraçando justamente o que, de acordo com o bom gosto institucionalizado da visão de cinema do público contemporâneo, deveria se evitar por se considerado deficiências de um filme, quando na verdade é a razão de ser em qualquer exploitation. Daí não espanta que a maioria dos blockbusters assimile uma ou outra ideia dos filmes B apenas como ponto de partida para fazer valer a sua grandiloquência, quase sempre preocupados que algo grande esteja por ocorrer ou já acontecendo. Carpenter, Dante e Romero são cineastas que lidam com gêneros, e não com filmes-eventos que sejam por si só grandes acontecimentos. Dessa “despretensão” (que nada mais é que uma pretensão com finalidades distintas) surge uma incompreensão ou indiferença, que leva espectadores a equívocos como o de reduzir o recente trabalho de Carpenter como “telefilme” (o que parece a sina de todo filme B contemporâneo que se preza, o que justifica a existência de uma série como Masters of Horror, lançada há poucos anos). Vendo The Ward em algum momento é possível lembrar de Arraste-me para o Inferno, de Sam Raimi (este sim um filme domesticado que dilui todo um gênero para um público de shopping center que dificilmente perderia seu tempo assistindo a um autêntico filme B [como The Ward]): conceitualmente, ambos parecem versões esticadas de um episódio de série de horror de TV, porém o de Carpenter é superior (e mais bem pensado que o de Raimi), esculpindo visões do inferno no seu passeio ao horror de um hospital psiquiátrico e lidando muito bem com espaços claustrofóbicos típicos de algumas de suas melhores obras (O Enigma de Outro Mundo, Príncipe das Sombras, Fantasmas de Marte, entre outros).
Quando soube que o seu Piranha original, dos anos setenta, estava sendo refilmado em 3-D, o velho Joe Dante decidiu também experimentar com a tecnologia nesse formato (os novos projetos de Dario Argento e do próprio George A. Romero também trilharão esse caminho). The Hole é um raro filme de fantasia contemporâneo verdadeiramente imbuído de um espírito de curiosidade e aventura, desde Dane (Chris Massoglia) espiando a sua nova vizinha (Haley Bennett) na abertura (ou as tentativas de aproximação) até os percalços para resolver os conflitos surgidos com a descoberta do misterioso buraco no porão na casa de subúrbio para onde os protagonistas se mudam. O terror no cotidiano, o perigo que ronda na vizinhança, brinquedos como figuras ameaçadoras, todo o cinema de Joe Dante condensado na história dos dois irmãos que vão ao inferno e retornam para superar seus temores pessoais. Um dos poucos filmes recentes a de fato constituir uma fábula, não com lição, mas um sentido moral: a de que os medos e preocupações que alimentamos nos encarceram em grades que erguemos ao nosso redor. The Hole é a materialização desse pavor, dos fantasmas que residem tão somente em nossas mentes (e de onde se libertam e criam vida), seja o trauma decorrente da ausência — ou ameaça — da figura paterna, ou simplesmente o horror ocasionado pelo desconhecido.
Vale lembrar que os três últimos filmes de Dario Argento, mesmo contando com elencos encabeçados por atores de prestigio entre o público, também tiveram no Brasil, onde foram lançados exclusivamente em DVD, o mesmo destino de A Ilha dos Mortos, The Hole e Aterrorizada. São todos trabalhos de autores que cultivam o cinema fantástico, não o do show de técnica e de efeitos especiais (que são utilizados minimamente, não por insuficiência, mas o necessário para dar conta das intenções dos seus autores). Suas estéticas são as decorrentes dos filmes de baixo orçamento, e tampouco aspiram fazer um filme bem feitinho, ou expor uma suposta excelência do roteiro e das interpretações, como se estas virtudes por si só garantissem um produto de qualidade, quando muitas vezes resultam mesmo é em filmes quadradinhos e não raro esquemáticos, e que por si sós geralmente não levam a lugar nenhum. Tudo é feito em um tom pequeno e discreto, numa oposição ao modelo cada vez mais reinante nos blockbusters. Podem até ser considerados trabalhos de final de carreira, porém mesmo que lhes falte algo para incluí-los entre as grandes obras de seus respectivos cineastas, há muito a se aproveitar nesses filmes.