Em mais de um momento já tentaram tachar o italiano Dario Argento de “novo Hitchcock” ou ao menos de um de seus sucessores cinematográficos. A afirmação não diz muito porque o diretor se insere mesmo é dentro de uma longa tradição do cinema de horror italiano (e por tabela, europeu) que passou a se desenvolver com força a partir de meados dos anos 50. O interessante é observar como Dario Argento trabalha toda uma herança deixada pelo legado da obra de Hitchcock depois que ela foi reavaliada pela crítica (o próprio Argento foi crítico no jornal Paese Sera) e assimilada por diferentes realizadores em diversos filmes subsequentes. Parte da obra de Argento estaria ao lado da de Brian De Palma como as que mais fundo refizeram algumas das obsessões do cineasta inglês, partindo de materiais que por vezes eram grandes pastiches dos filmes de Hitchcock, além dos jogos de perspectiva e simulações, e manipulação do olhar e dos elementos de suas tramas para mexer com os nervos do espectador e construir thrillers nos quais possam se deleitar com as estruturas da técnica e linguagem cinematográficas. O próprio Argento desde os seus primeiros filmes cultiva um gosto pelo suspense mais acentuado que o de outros mestres do terror italiano de sua época. De certa maneira, alguns de seus títulos (e outros de De Palma) lidam em relação ao suspense hitchcockiano algo próximo do que os westerns de Sergio Leone (lembrar que Argento foi co-roteirista de Era uma Vez no Oeste) fizeram com o faroeste clássico norte-americano, levando essas respectivas influências a níveis extremos, como que irrompendo um cinema que devia antes ser reprimido ou apenas insinuado, e amplificando o choque e a violência.
Mas é no Antonioni de Blow-Up – Depois Daquele Beijo que Argento deve, em parte, mais tributo. Os primeiros filmes dele nos anos setenta já evidenciam essa referência fundamental. Entretanto, não é preciso se esforçar muito para recordar que Blow-Up foi a mais importante assimilação do cinema europeu de algumas questões hitchcockianas derivadas nas especulações sobre as aparências e na busca e reconstrução da imagem a partir de uma premissa de suspense. O que influenciaria nas pesquisas formais dos três primeiros trabalhos de Argento (O Pássaro das Plumas de Cristal, O Gato de Nove Caudas e Quatro Moscas no Veludo Cinza), cujas variações seriam aperfeiçoadas até a depuração absoluta que resulta em Prelúdio Para Matar, a obra-prima do italiano, e um dos tantos filmes inspirados diretamente em Blow-Up (como A Conversação e Um Tiro na Noite). Por tabela, todos partem do legado deixado por Alfred Hitchcock. Outro marco do suspense (e terror) europeu que também encontra correlato com a obra de Hitchcock (e antecipa um bocado os filmes de Argento) é A Tortura do Medo, com toda a sua obsessão pela imagem, o caráter doentio, as mortes em série, a figura do psicopata, o voyeurismo.
Já em Hitchcock, o cinema de horror de fato se mostra visível em seus primeiros filmes nos anos sessenta, Psicose e Os Pássaros. Desapontado pelas repercussões relativamente mornas de alguns de seus filmes mais ambiciosos (os imediatamente anteriores O Homem Errado e Um Corpo Que Cai), o diretor compreendeu que o público àquela altura clamava por espetáculos de horror mais explícitos. Com um orçamento modesto e parte de sua equipe de televisão (não parece coincidência que todo mestre do suspense/terror contemporâneo como o próprio Argento ou John Carpenter terminem cedo ou tarde por rodarem seus trabalhos na televisão, onde pode existir mais liberdade para lidar com algo próximo do que seria o verdadeiro filme B e mais enxuto e livre das amarras do cinemão atual), Hitchcock criou nos estúdios da Universal um modelo como Psicose (bem como o horror apocalíptico de Os Pássaros) que seria incontornável para o gênero pelas décadas seguintes. Os já mencionados títulos que compõem a chamada trilogia dos animais de Argento compartilham de algumas das obsessões do cinema de horror de Hitchcock, como a presença constante de animais como figuras ameaçadoras ou como centros de um mistério (os pássaros empalhados que decoram o ambiente mórbido em que vive Norman Bates em Psicose; os predadores em Os Pássaros).
Alusões ao mestre do suspense podem ser encontradas ao largo da filmografia de Argento, porém elas apenas se escancaram na homenagem brilhante que é Do You Like Hitchcock? (título internacional de Ti Piace Hitchcock?), um de seus trabalhos mais recentes. Do You Like Hitchcock? é um thriller paranóico e um filme cinéfilo como nenhum outro do mestre italiano. Seu personagem é um estudante de cinema, seu quarto é repleto de cartazes clássicos e mais de uma cena importante do filme se passa na videolocadora do bairro em que mora. Argento mistura idéias e recria cenas dos filmes de Hitchcock numa quantidade ainda maior que Brian De Palma tenha feito em qualquer um de seus trabalhos inspirados no diretor inglês. Do You Like Hitchcock? é a versão bem particular de Dario Argento para Janela Indiscreta conjugado com elementos de outros títulos clássicos de Hitchcock. Giulio, o protagonista, gosta de bisbilhotar fazendo seu olhar penetrar, por meio de um indiscreto binóculo, nas janelas do prédio em frente, onde numa dessas janelas enxerga uma bela garota que nunca tinha visto antes. Ela percebe que está sendo observada, mas pouco se importa. Argento se deleita nas composições e cruzamentos entre a arquitetura de cada espaço e a geografia local, sobretudo nos dois prédios vizinhos e nas visitas a locadora, onde Giulio se esbarra com a moça, chamada Sacha, que dialoga com uma outra garota, loira, sobre Pacto Sinistro, que na Itália é chamado de “Delitto per Delitto”.
Quando a mãe de Sacha é morta (numa cena de assassinato cuja preparação e consumo é filmada e decupada de maneira espetacular), Giulio não resiste em investigar por conta própria o crime não solucionado pela polícia. É quando as referências aos filmes de Hitchcock vão se tornando cada vez mais abundantes: as sequências em que Giulio trafega pelas ruas perseguindo alguma das personagens femininas (que remetem a Um Corpo Que Cai), a cortina do banheiro (Psicose) e um desfalque na empresa em que trabalha uma das personagens (Psicose e Marnie), Disque M Para Matar perto do final, ou quando o protagonista levado pelo jogo de aparências das imagens com que se depara em sua busca ligando os pontos da trama chega a conclusões derivadas da premissa da troca de favores de Pacto Sinistro. Alucinação, prova, impressão? O que faz o personagem central é interpretar, de uma janela a outra, as aparências que lhe oferecem à visão, e ao longo do filme, numa intrincada relação homem-mulher equacionada em termos de ação e suspense, provar para a sua namorada que as suas suspeitas sobre as duas garotas procedem, ou seja, que ele interpretou corretamente as cenas que observou nos eventos que ocorrem no prédio em frente e em suas jornadas investigando e vigiando as moças (as duas garotas não deixam de ser um equivalente feminino das duplas de homossexuais que ocupam o centro dos crimes de Festim Diabólico e Pacto Sinistro). Sacha começa como pura fantasia masculina para se converter como a projeção do mal pela instância de culpa e crime, expondo-se a um desnudamento moral completo. Idéias tiradas de outros filmes de Hitchcock vão se alastrando no de Argento, mas a composição é original: ele sempre encontra formas de usá-las de maneira bem particular dentro de seu refinamento estilístico e sofisticação estética e visual combinados com níveis de delicioso entretenimento. Vale mencionar também que a ótima trilha é composta pelo veterano Pino Donaggio, ex-colaborador de Brian De Palma em alguns de seus filmes mais hitchcockianos, e cujos acordes por vezes emulam os de Bernard Herrmann (o compositor clássico dos filmes de Hitchcock).
Do You Like Hitchcock? é uma grande brincadeira em cima da obra de Alfred Hitchcock empreendida com toda a seriedade e domínio narrativo do diretor italiano, que desde o começo de sua carreira foi capaz de trilhar seu cinema sem sentir a sombra da influência de mestres como Hitchcock que tanto marcaram a formação de seu estilo. Mas tampouco Dario Argento se furtou à herança deixada pelo vasto repertório de imagens que o realizador inglês nos legou e que o tornaram possivelmente o cineasta mais citado, estudado, analisado e imitado de todos os tempos.
Grande filme. Ótimo.
Possui um dos momentos que, para mim, foi um dos mais tensos da carreira do Argento; sem contar que é um baita POWSLAHSUP metalinguístico. A mistura de dois genes: Hitchcock, com seu suspense americano, e Argento, com seu giallo… preciso dizer?
demais.